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    A Casa de Veraneio
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    A Casa de Veraneio

    Pavios acesos

    por Renato Furtado

    O sol banha a Côte D'Azur de dourado, um leve vento sopra sobre as ondas do Mediterrâneo e a rica família aproveita o fim de tarde para sentar-se à luxuosa mesa de sua mansão de verão para aproveitar um vasto banquete. Enquanto isso, os serviçais e garçons e cozinheiros cuidam de trazer os pratos do menu, deliciosamente preparados para o deleite dos convivas, que riem e contam histórias divertidas de férias passadas. Mas este ambiente de celebração e comédia é apenas uma máscara, e não demora até que a diretora, roteirista e estrela Valeria Bruni Tedeschi derrame um caldeirão de angústias, mágoas reprimidas e raivas sobre a cabeça de seus espectadores em seu quinto longa de ficção, A Casa de Veraneio.

    Ao anunciar seu mais recente projeto como uma exploração satírica e bem-humorada das relações entre patrões e empregados, em uma leitura italiana do autor Julian Fellowes (Downton Abbey), Tedeschi dribla o público e manipula nossas emoções tendo consciência da história das cinematografias francesa e italiana, que não por acaso são as nacionalidades da realizadora. Em A Casa de Veraneio, estão presentes a verborragia dos títulos parisienses, os sentimentos exagerados e quase caricatos dos personagens da sétima arte romana e, evidentemente, os excêntricos personagens que povoam as narrativas de filmes produzidos em ambos os países. Mas há, no entanto, algo muito mais importante, e subliminar.

    Trata-se da perspectiva cáustica com que Tedeschi aborda seu roteiro, coescrito com suas colaboradoras habituais, Noémie Lvovsky e Agnès de Sacy. Apesar de pouco inovador, o tratamento aproxima empregados e servidores em suas paixões, pulsões e perversões, estruturas que ultrapassam as questões de classe no cerne desta comédia dramática, cujos personagens são humanos, demasiadamente humanos. Como parte de uma mesma família, tanto aqueles que têm o dinheiro quanto aqueles que trabalham, afetada por uma mesma perda — a morte de Marcello (Stefano Cassetti), aquele que fazia as vezes de sustentáculo e balisador da disfuncionalidades — todos estão à beira de um ataque de nervos.

    É precisamente isto que nos faz esperar por uma comédia de costumes convencional, cuja ausência de piadas e gags é compensada pelas idiossincrasias individuais, da impossibilidade de comunicação entre os personagens e por momentos verdadeiramente hilários, como quando Celia (Oumy Bruni Garrel), filha adotiva de Anna (Tedeschi), afirma não acreditar em Deus dentro de uma igreja, contrariando as raivosas preces da mãe; quando ocorre uma impossível discussão política em um despretensioso relaxamento na na piscina; e/ou quando um homem tenta se afogar, mas não consegue por ser um exímio nadador. São estes os elementos da cômica bomba que (aparentemente) está prestes a explodir.

    O ponto principal, contudo, é que o artefato jamais é deflagrado, e o riso provocado por Tedeschi e cia. é antes nervoso do que libertador. Enquanto esperamos por um determinado desenrolar da narrativa, somos constantemente lembrados de que A Casa de Veraneio é, de fato, um drama bastante amargo. Porque mesmo quando reagem de formas tradicionalmente cômicas — através do riso, em outras palavras —, os personagens da realizadora estão tratando de temáticas seríssimas e dolorosas. E, logo, aquela teoricamente leve e burlesca cena de jantar transforma-se em uma coletânea de memórias de sofrimento e de violência (masculina) contra as mulheres, com casos de estupros, abusos sexuais e abortos forçados.

    Tedeschi parece nos dizer que é possível rir, sim, da vida, mas que também é impossível dourar a pílula. E não poderia ser diferente, principalmente a julgar pelo atual contexto da França e da Itália: ao passo em que a primeira nação foi recentemente abalada por um forte e contestador movimento social, o dos coletes amarelos, a segunda é manchada pela corrupção e por governos cada vez mais autoritários. Em maior ou menor grau, estas temáticas estão muito presentes em A Casa de Veraneio, que faz com que a obra seja tão pública e política quanto pessoal e de reconciliação biográfica, como são os filmes da realizadora — de certo modo, este longa parece ser até mesmo uma extensão de Um Castelo na Itália (2013).

    Não só é difícil, portanto, não realizar paralelos entre a ficção e a vida em si de Tedeschi, como este também seria um ato de imprudência. Afinal de contas, a diretora realmente perdeu um irmão — Virginio Bruni Tedeschi — em 2006; separou-se de um ator com quem trabalhou em diversos filmes — o francês Louis Garrel (O Formidável), que parece ser a inspiração de Luca (Riccardo Scamarcio), personagem que se divorcia de Anna, que também é cineasta, logo no início de A Casa de Veraneio —; e Oumy Bruni Garrel realmente é filha adotiva de Tedeschi. Estes fatos adicionam uma determinada camada de curiosidade, é claro, mas principalmente ajudam a complexificar a trama.

    Assim, ao mesmo tempo em que acompanhamos a jornada de Anna em suas tentativas de preparar e rodar um longa sobre seu falecido irmão, também estamos, de uma maneira ou de outra, assistindo à evolução de uma autobiografia, principal fonte de inspiração do cinema de Tedeschi. E ela, em um diálogo espirituoso com a corroteirista Nathalie (Noémie Lvovsky, que coescreveu o script desta dramédia), prova ter ciência das fronteiras entre comédia e drama e representação e confissão: um longa de humor sempre termina no momento certo, mas um dramático, à primeira vista mais próximo da realidade, pode continuar seu percurso como faz a vida.

    Com um elenco composto por renomados atores franceses e italianos (Pierre Arditi e Valeria Golino, entre outros), A Casa de Veraneio é um irônico e atormentado estudo sobre o luto, pessoas à beira de um ataque de nervos, afetos despedaçados, a sombra da ausência, abandono, divórcios, casos amorosos, casamentos falidos e desejos sufocados. E, mesmo assim, mesmo ao lançar-se contra o vazio, ao debruçar-se sobre o vazio da condição humana — um estado inerente contra o qual lutamos por meio da arte e das nossas tentativas de comunicação —, Tedeschi ainda alcança instantes de verdadeira alegria, como em uma ópera cômica.

    Trazendo referências até mesmo um tanto quanto inesperadas, que vão desde Luis BuñuelFederico Fellini — a cena do jantar de Tedeschi cita o banquete metalinguístico de O Discreto Charme da Burguesia, enquanto a neblina de seu divertido epílogo nos faz lembrar da névoa constante de Amarcord —, esta comédia dramática é muito mais drama do que comédia, um longa furioso e triste, que "toca as raízes da angústia e as revive". A despeito de sua fotografia dourada, que emula um efeito eterno de pôr-do-sol, A Casa de Veraneio é, no fim das contas, uma narrativa melancólica e agridoce, e muito, mas muito mais amarga do que agradável ao paladar. O que quer dizer que é um sólido triunfo, neste caso.

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