Esses dias
por João Vítor Figueira"Não me chame de femme fatale de Lou Reed", é uma das frases mais marcantes de Nico nesta cinebiografia. Aliás, ela também não gosta de ser chamada pelo apelido que a revelou para o mundo na colaboração com a banda The Velvet Underground. Nico é um nome artístico que a alemã Christa Päffgen ganhou quando ainda era modelo, na adolescência, antes de suas colaborações com Andy Warhol em Nova York. A alcunha teria sido concedida por um fotógrafo por ela namorar o diretor Nikos Papatakis. A Christa interpretada com um paradoxal vigor sorumbático pela atriz dinamarquesa Trine Dyrholm no filme Nico, 1988 é uma mulher que não quer ser definida por seu passado, por sua beleza e muito menos pelos homens com quem dormiu.
A cineasta italiana Susanna Nicchiarelli opta por um olhar carinhoso para uma figura que outros diretores facilmente poderiam retratar de forma tacanha como um trem desgovernado. Os traumas pessoais, o vício em drogas e os momentos decadentes de Nico não são demônios a serem exorcizados pelo longa-metragem, mas sim abraçados, como se fosse possível para ela alcançar algum conforto. "Por favor não me confronte com meus fracassos / Eu não esqueci deles", já cantou Nico em sua música mais icônica, "These Days". Nico, 1988 traz o fracasso à tona, mas de forma circunstancial, não como um fator determinante. A performance cheia de camadas de Dyrholm, que em um primeiro momento se apresenta como uma figura gélida, é capaz de fazer o espectador entender que estamos diante de uma atriz que assume uma personagem (Christa), que também carrega o lastro de uma outra personagem (Nico).
A trama se passa nos dois últimos anos de vida de Nico, que inicia uma turnê pela Europa após um empresário/fã (interpretado por John Gordon Sinclair, ótimo em cena) de Manchester assistir a um de seus concertos e estimular a cantora a passar por países como Itália, França, Tchecoslováquia e Polônia. Entre 1986 e 1988, no crepúsculo de sua vida e carreira, a cantora cujo nome artístico é um anagrama de icon olhava para a fama na década de 1960 com desdém. Para ela, estar no topo e experimentar o ostracismo comercial eram situações igualmente "vazias". A forma do roteiro, também assinado por Nicchiarelli, de reforçar a noção de descrença com a vaidade do estrelato é bastante precisa. A narrativa constrói uma Nico muito ciente de si mesma, uma mulher disposta a cortar as excessivas ligações que fazem entre a sua figura e os feitos de outros homens.
Os constantes enquadramentos do rosto de Dyrholm em primeiro plano, principal característica da direção de Nicchiarelli, são impiedosos, mas também empáticos. Seu semblante na maior parte do filme exprime, obviamente, grande melancolia, mas essa sisudez é complexificada na relação de Nico com seu filho, Ari (Sandor Funtek). O rapaz é fruto de um relacionamento de Christa com o ator Alain Delon, foi abandonado pela mãe na infância e sequer foi reconhecido pelo pai. Com vícios semelhantes, mãe e filho compartilham de um laço longe dos clichês. Ela o retira de uma clínica de reabilitação para que Ari seja sua companhia durante a turnê na Europa. Claramente não é o que o rapaz precisa naquele momento e o filme sabe explorar as contradições da dinâmica entre os dois dali em diante, quando muito é expresso por gestos, não por palavras.
A figura quase gótica de uma Nico quase cinquentenária configura um contraste com seu passado de arquétipo de musa loira-hipster-before-it-was-cool. Nicchiarelli evoca tempos pregressos em Nico, 1988 através de curtos flashbacks com imagens reais da cantora e modelo. A textura das imagens alude a uma lembrança empoeirada. A matiz de cores imagina o passado como uma uma memória quase psicodélica, delirante. A mensagem é que não se deve se estribar no que já passou. A infância da cantora, entretanto, é brevemente encenada por uma atriz mirim fascinada pela destruição da Alemanha pelos Aliados ao final da Segunda Guerra Mundial.
Em termos históricos, Nico, 1988 só derrapa na tentativa de aliviar a imagem de antissemita que Nico teve em vida. Os preconceitos que a artista demonstrou, de acordo com relatos até de seus amigos pessoais, são suavizados no longa-metragem pelo retrato que Nicchiarelli escolhe fazer da relação cordial da cantora com um homem judeu. Se fosse para tocar no espinhoso assunto, melhor seria ter abordado essa parte polêmica da vida de Nico com mais honestidade.
Nico foi dona de uma das vozes mais peculiares que o rock ‘n’ roll já conheceu. Sua lânguida voz de contralto, quase desafinada, é uma propriedade típica demais para ser imitada, mas Dyrholm conseguiu fazer isso sem soar caricatural.
Sem grandes devaneios e distrações formais em sua estrutura narrativa, Nico, 1988 é uma cinebiografia musical típica. O filme se propõe a canalizar cada fase de sua biografada através de apresentações de músicas adequadamente escolhidas para refletir o estado espírito da personagem de momento em momento durante a turnê. Uma escolha óbvia, é claro, mas que funciona.
Com arranjos feitos pela banda italiana Gatto Ciliegia contro il Grande Freddo, o catálogo de Nico é revisitado com propriedade pela voz de Dyrholm. A versão sepulcral de "Janitor of Lunacy" tocada no bar de Manchester é de assombrar. A interpretação de "All Tomorrow's Parties", em um registro mais raivoso do que na gravação original do The Velvet Underground, faz todo o sentido com a proposta do filme. Quando as circunstâncias do enredo fazem Nico cantar com uma banda de jazz, a performance do standard "Nature Boy" faz a gente pensar numa colaboração hipotética entre Nico e Chet Baker.
A grande catarse musical do filme, entretanto, se dá quando Nico e sua banda ultrapassam a Cortina de Ferro para tocar para um grupo pequeno, mas fiel, de fãs na Tchecoslováquia comunista. O sentimento anti-esquerdista da cantora aflora e ela se indispõe com o público, mas basta começar a cantar para que Dyrholm se entregue à música na canção-desabafo "My Heart is Empty". Raras vezes o "som da derrota", tão buscado por Nico, soou tão glorioso.