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    Distúrbio
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Distúrbio

    O jogo das perseguições

    por Bruno Carmelo

    Desde as primeiras cenas, Sawyer Valentini (Claire Foy) aparece como uma figura neurótica, angustiada, prestes a atacar ou ser atacada por alguém. Quando um colega passa pelo corredor da empresa, ela leva um susto. Quando o patrão a chama para uma reunião, tem a impressão de ser assediada sexualmente. Logo depois, confessa ter sido perseguida por um homem no passado, chegando inclusive a cogitar o suicídio, como algo passageiro, irresponsável. Mas quem nunca teve os seus dias difíceis, certo?

    Unsane gosta de brincar com as certezas do espectador. Por estarmos colados a Sawyer, tendemos a torcer por ela, porém o roteiro de Jonathan BernsteinJames Greer toma precaução para criar dúvidas à versão da protagonista. Ela está falando a verdade? Não estaria louca? Alguns de seus argumentos são, de fato, muito difíceis de acatar. Após a internação forçada numa clínica psiquiátrica, sabemos que alguma injustiça muito grande está sendo cometida, mas não exatamente a quem. A história solicita o julgamento constante do espectador, fornecendo sugestões para que ele mude de ideia a cada dez minutos.

    No segundo ato, quando a verdade é revelada, o suspense perde um pouco de sua força. Steven Soderbergh transforma o jogo de identidades num suspense mais tradicional, uma perseguição comum. O espaço do hospital psiquiátrico é bem explorado, assim como uma série de informações legais e médicas, que garantem a mínima plausibilidade da narrativa. É assustador compreender a maneira verossímil como uma pessoa pode ser trancada num local contra a sua força, com todo o amparo constitucional possível. Enquanto isso, Claire Foy consegue manter a atuação na ambiguidade necessária entre a sanidade e a loucura.

    Felizmente, o terço final retoma toda a potência da história, e vai além. Unsane se transforma numa história de terror trash, com direito a uma série de reviravoltas, perseguições e mortes espetaculares. O projeto jamais escondeu sua vertente de “filme B”, um pouco fácil em suas resoluções, interessado em provocar mais sensações do que reflexões. Neste sentido, a filmagem com um iPhone torna-se mais do que mera curiosidade: ela constitui um recurso pertinente à aparência de amadorismo, exploitation, além de se inserir organicamente numa história tendo telefones celulares e a tecnologia em papel de destaque.

    Talvez o resultado represente pouco mais que uma brincadeira, porém eficaz e plenamente consciente de sua função. A divertida cena final levou o público às gargalhadas, ao mesmo tempo em que funciona como conclusão de um suspense psicológico rasteiro. Partindo das grandes produções, Soderbergh brinca de fazer cinema caseiro do mesmo modo que Quentin TarantinoRobert Rodriguez brincaram de resgatar os filmes trash dos anos 1970 com À Prova de Morte e Planeta Terror.

    Em meio a tantas produções de terror e suspenses psicológicos ditos “sérios” no circuito comercial, ostentando construções risíveis de seus personagens e motivações, é muito mais saudável descobrir um projeto que reconhece este funcionamento e se assume como mistura de paródia e homenagem. Além de investir no nicho do cinema de gênero de modo funcional, serve de provocação ao estado da indústria americana no século XXI.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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