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    Verão de 84
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    Verão de 84

    A perigosa imaginação

    por Bruno Carmelo

    Quando chega o período das férias escolares, Davey (Graham Verchere) e os amigos do bairro não têm o que fazer. Os pais não demonstram qualquer afeto pelos garotos, a cidade não oferece opções culturais. Assim, a fuga acaba sendo simbólica, tanto em delírios de sexo (eles espiam a vizinha nua, folheiam revistas pornográficas) quanto de morte (a suposição de que o vizinho solteiro, um admirado policial da região, seja um assassino em série). As provas contra o policial são fracas – ele tem uma porta trancada no porão, recebe crianças em casa de vez em quando -, mas na ausência de emoção em suas vidas, os protagonistas criam a figura de um assassino perigosíssimo para justificar o aparente desaparecimento de crianças na cidade. Ninguém ao redor se preocupa tanto com estes sumiços, exceto pelos jovens que, na falta de outra ocupação, se convertem em detetives particulares.

    Assim, Davey, Tommy (Judah Lewis), Woody (Caleb Emery) e Curtis (Cory Gruter-Andrew) tornam-se diretores de sua própria fantasia, organizando a mise en scène do projeto como um todo: ao revirarem o lixo do suposto criminoso, atribuem o fato aos guaxinins, ao colocarem walkie-talkies escondidos nos arbustos, armam a desculpa de terem esquecido o objeto durante uma brincadeira de “manhunt”, ou a conveniente “caçada humana”. A presença de um adversário mortal confere uma razão de existir aos jovens abandonados, provocando uma excitação tão propícia ao buddy movie (o carinho dos quatro uns pelos outros é de fato tocante) quanto da narrativa sobre adolescentes hormonais. Não por acaso, a garota dos sonhos dos quatro é incorporada à equipe assim que estimula a fantasia deles sobre a possibilidade do sexo.

    Verão de 84 funciona como um aterrorizante estudo sobre a imaginação juvenil, ao mesmo tempo em que apresenta uma visão sombria do mundo adulto. Os protagonistas moram em famílias destruídas pelo alcoolismo, a infidelidade, o abandono parental. Além disso, o roteiro insere de maneira orgânica o clima de tensão devido à Guerra Fria e à eleição de Ronald Reagan, vistos como sintomas de uma sociedade doentia. Nada parece acontecer na trama fora da imaginação do quarteto porque, de fato, nada acontece naquele subúrbio inerte em que os adultos saem de casa para o trabalho, e de volta para casa, sem olhar na cara uns dos outros. Enquanto isso, o clubinho adquire um olhar quase onisciente, espiando a tudo e todos com seu binóculo, se comunicando em tempo integral com os walkie-talkies. Eles representam um mundo de união e proatividade em meio à letargia preocupante dos pais, que parecem saídos de algum universo zumbi. Desde Corrente do Mal o cinema independente norte-americano não produzia uma obra tão soturna quanto às perspectivas de passagem à fase adulta.

    O suspense surpreende por ocultar do espectador, durante dois terços da narrativa, qualquer prova efetiva contra o suspeito Wayne Mackey (Rich Sommer). Os diversos indícios encontrados pendem a favor da tese dos jovens, mas não constituem provas conclusivas. O espectador é convidado a efetuar julgamentos por conta própria, de acordo com suas convicções morais e sua fé na ficção. Além disso, o que são provas num mundo em que as pessoas não querem mais acreditar? De que serve apresentar fatos e estatísticas a famílias que já decidiram, em suas crenças pessoais, que o policial constitui um pilar de moralidade e virtude? É muito interessante que os personagens decidam provar a sua tese com a ajuda de uma câmera de vídeo, em busca de uma evidência incontestável, pois objetiva, externa às suas mentes férteis. Em tempos pré-fake news e pré-manipulação digital da imagem, ainda se recorre à prova pela imagem. O roteiro tira ótimo proveito das gravações e das fotografias como elementos mórbidos, espécie de mumificação de algo que já morreu. A imagem tornaria eternos os crimes que ocorrem na região.

    Verão de 84 também chama atenção pela belíssima construção estética: os diretores François SimardAnouk WhissellYoann-Karl Whissell trabalham muito bem os espaços em scope, com lentos movimentos de câmera rumo aos personagens sugerindo ao mesmo tempo o julgamento e o voyeurismo, a investigação feita pelos garotos – que literalmente invadem o espaço privado de Mackey – e a busca por indícios invisíveis, talvez numa mínima expressão do olhar do ambíguo policial. A excelente trilha sonora à la John Carpenter honra os anos 1980 sem repetir temas conhecidos, e a iluminação adota tons crepusculares enquanto resgata a textura da película, algo levemente gasto, de pouca nitidez, o que representa muito bem a linha tênue entre a invenção e a realidade, entre o verdadeiro e o falso.

    Quando a história parece ter apresentado todas as suas cartas, o terceiro ato oferece uma guinada chocante, espécie de embate traumático dos garotos com o limite de sua fantasia. Não é possível entrar na fase adulta com tamanha ingenuidade, sugere o filme, que confronta a excitação fictícia de Davey sobre um assassino em série com a realidade nada empolgante de se confrontar de fato a um criminoso. A sequência final, perversa e violenta ao extremo, decide nem abraçar a tese do garoto, nem abandoná-la por completo, deixando que sua alegre imaginação se transforme numa assombração, um mito sangrento que o perseguirá para sempre – em outras palavras, uma mistura de trauma e fetiche. Para se tornar um homem, como sempre quis, não basta a Davey ter o contato sexual com a garota desejada: ele precisa ter a experiência real da morte.

    O trio de diretores fornece a melhor conclusão possível para essa fábula de um herói invisível, amaldiçoado por seu próprio heroísmo, e de um coming of age nada otimista para os jovens que formaram suas identidades em meio aos incertos anos 1980. Conforme afirmam os personagens, existe algo muito errado na configuração dos subúrbios de classe média, onde todos se conhecem sem se conhecerem de fato. “É para isso que existem as cortinas”, explica um adulto sobre as imoralidades que acontecem dentro dos belos lares da cidade. “Todo serial killer é vizinho de alguém”, lembra a narração. Ao invés da figura explicitamente maligna do monstro ou do psicopata caricatural, é muito mais assustadora a ameaça representada pelo vizinho sorridente, pelo transeunte prestativo e pela nossa própria imaginação.

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