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    Era uma Vez em... Hollywood
    Críticas AdoroCinema
    3,0
    Legal
    Era uma Vez em... Hollywood

    Os brinquedos de Tarantino

    por Bruno Carmelo

    Depois de oito longas-metragens, Quentin Tarantino possui plena consciência da fama que construiu para si, e sabe exatamente o que os fãs esperam dele. O diretor tem contribuído a alimentar a imagem de ícone do cinema B, grande conhecedor de terror, ação, policial e exploitation, exímio coordenador de cenas de ação, com um humor autoparódico e desmesurado. Espera-se de Tarantino que carregue as tintas nos tiros e explosões, nas referências à cultura pop, na condução voluntariamente gratuita da violência. No entanto, em seus últimos filmes, o cineasta tem privilegiado a vertente de “grande autor”, substituindo aos poucos o prazer do sangue pela maestria dos diálogos e da mise en scène.

    Os Oito Odiados trabalhava, durante aproximadamente uma hora de filme, a apresentação dos personagens, sua origem e suas motivações, à medida que se deslocavam pela neve. Esta apresentação, espécie de antessala ao conflito que desencadearia a ação principal, tem ocupado um espaço cada vez maior na filmografia do diretor. Ele prefere deixar em segundo plano as reviravoltas espetaculares para privilegiar a criação de personagens, brincando com estas figuras como quem brinca de bonecos dispostos em situações desconexas, pelo simples prazer do jogo. A abordagem lúdica resulta na estrutura surpreendente de Era uma Vez... em Hollywood, projeto de três horas de duração que passa mais de duas horas introduzindo personagens e deslocando-os livremente pelo mundo do cinema.

    Os protagonistas são três: Rick Dalton (Leonardo DiCaprio), ator pouco experiente de faroestes televisivos, seu melhor amigo, Cliff Booth (Brad Pitt), dublê decadente e assistente pessoal do colega, e Sharon Tate (Margot Robbie), atriz pouco conhecida, que leva uma vida ao lado do namorado, o cineasta Roman Polanski. Depois de uma breve introdução com Rick participando de produções repletas de clichês, o filme para de investigar as vidas profissionais de seus personagens para desconstruir a imagem do heroísmo. Embora nos prepare para uma ascensão na carreira de Rick, ela nunca se concretiza; embora Cliff seja reconhecido como um dublê capaz de encarar qualquer desafio, ele não é visto desempenhando nenhuma cena sequer; embora Sharon tenha participado de filmes famosos, nunca a vemos num set de filmagem.

    O foco do projeto se encontra no aspecto patético do ator tentando ser amado e reconhecido, do dublê que se limita à função de capacho e da esposa-troféu que passa os dias caminhando pela cidade, bela e superficialmente, enquanto a câmera filma sua bunda e nos pés nus. Tarantino se diverte com o cotidiano destes anti-heróis, os diálogos banais nos bastidores, o momento de dar comida ao cão, os ensaios sozinhos dentro de casa. Seria exagero dizer que Era uma Vez... em Hollywood subverte o glamour do cinema: ele apenas não se interessa por este aspecto, deixando-o em segundo plano ao privilegiar a metalinguagem dos personagens-que-interpretam-personagens.

    Felizmente, o filme conta com um elenco invejável. Tarantino atingiu aquela fase da carreira em que pode contratar qualquer ator que desejar, mesmo para papéis pequenos, porque qualquer nome da indústria gostaria de ser associado a um novo projeto do cineasta. DiCaprio aparenta se divertir muito no personagem do sujeito infantil, enquanto Pitt encarna o monstro gentil, o tipo cujos sorrisos dóceis escondem uma ferocidade implacável quando necessário. Ambos possuem cenas deliciosas com personagens secundários – o encontro entre Rick e a atriz mirim, a luta improvisada de Cliff e Bruce Lee -, mas confinam-se na maior parte do tempo às suas casas e seus carros, quando conversam, apiedam-se sobre si mesmos, assistem à televisão juntos, comem qualquer prato improvisado que encontram na geladeira.

    Ao longo da narrativa, o diretor encontra momentos para demonstrar sua habitual inteligência de enquadramentos e conhecimento dos diferentes gêneros do cinema. Quando Rick grava um western spaghetti, a apresentação de sucessivas tomadas em plano-sequência se revela uma excelente solução de mise en scène. A chegada de Cliff ao drive-in também impressiona pelos movimentos de câmera e pelo trabalho com espaços. Apesar destas cenas isoladas, resta constatar que o filme se arrasta, não apresenta conflitos (leia-se: reviravoltas que mudem os rumos da narrativa) durante aproximadamente 140 minutos, e gira em círculos ao pular de personagem em personagem, os três separados em subtramas paralelas durante a quase integralidade da história.

    Talvez esta estratégia seja inteligentíssima, por romper com a estrutura clássica narrativa e evitar o fetiche da violência que se esperaria do cineasta. Talvez ela seja apenas autoindulgente, como se o diretor dissesse filme após filme que não precisa provar nada a ninguém, agradar quem quer que seja. Tarantino constrói uma introdução de duas horas de duração porque pode fazê-lo, e esta liberdade autoral constitui tanto uma arrogância quanto uma possibilidade real de subversão. É uma pena que, neste caso, a subversão ocorra pelo recurso à frustração. Antes, apenas a violência de Tarantino parecia inconsequente, agora, toda a narrativa se comporta como se acontecesse apesar do espectador.

    Aos fãs, restará o prazer evidente de presenciar atores consagrados ridicularizando a si próprios, além do aceno a atores e filmes reais dos anos 1950 e 1960 (o roteiro se esforça para incluir o máximo de referências possível). Em paralelo, a conclusão decide finalmente fornecer uma possibilidade de catarse, um encerramento às linhas narrativas que corriam sem direção precisa. O diretor recompensa o espectador paciente, que testemunhou mais de duas horas de uma monotonia impecavelmente produzida, através do gozo da violência. A cena, muito bem orquestrada, desperta curiosidade sobre como seria o filme caso houvesse mais cenas deste tipo, e se aparecessem mais cedo na história.

    Além disso, o encerramento é menos apoteótico do que singelo: Tarantino se autoriza a reescrever a História mais uma vez, alterando importantes fatos da cultura norte-americana para proporcionar os acontecimentos que gostaria de ter presenciado. Em Bastardos Inglórios, o cineasta imaginava a possibilidade de matar Hitler dentro de uma sala de cinema, porém desta vez ele propõe uma releitura mais doce das tragédias históricas. O espectador terminará a sessão sabendo muito pouco sobre a história de Hollywood, sobre os bastidores da indústria ou sobre o caso Sharon Tate. No que diz respeito à combinação entre diversão e crítica da cultura norte-americana, diretores jovens como Jordan Peele têm oferecido propostas muito mais satisfatórias no mesmo terreno pop-paródico. Mesmo assim, o espectador de Era uma Vez... em Hollywood terá a diversão de ver DiCaprio, Pitt e o próprio Tarantino se divertirem como num baile à fantasia, num faz de conta entre amigos munidos da única responsabilidade de parecerem alegremente irresponsáveis.

    Filme visto por 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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