Entretenimento atemporal
por Kalel AdolfoMulher-Maravilha 1984 é um daqueles filmes que ultrapassa a esfera da discussão cinematográfica. Além de ser um blockbuster glorioso, a obra de Patty Jenkins chega em uma assustadora sintonia com os tempos atuais, já que — sem querer — acaba refletindo sobre questões inerentes a um mundo em pandemia.
Inclusive, este é o maior trunfo da trama: conseguir provocar o público com questões sociais, mas sem esquecer a essência da produção, que é narrar a jornada de uma super-heroína. Tudo é feito de forma muito equilibrada, proporcionando uma experiência que não pesa, mas também não nos aliena.
Aqui, você não irá encontrar uma sociedade onde os mocinhos e vilões são bem definidos. Até a nossa protagonista não está livre de fraquezas. Todos os personagens são multidimensionais e possuem motivações coerentes — mesmo que nem sempre concordemos com elas.
E apesar da estética oitentista encantar, ela não nos afasta do verdadeiro propósito da história: apresentar uma sociedade individualista e consumista sendo arruinada por seus próprios impulsos.
Quem se alimenta dessa falha é Maxwell Lord, interpretado de forma sublime por Pedro Pascal. No filme, ele é um famoso empresário que promete riquezas para quem investir em sua companhia petrolífera. Todo o esquema é uma farsa, pois a figura não possui nenhuma propriedade rica neste recurso natural e está prestes a ser descoberto pelas autoridades.
Contudo, antes que seus planos sejam arruinados, ele encontra uma pedra capaz de realizar qualquer desejo. Esse é o ponto de partida na trama de Mulher-Maravilha 1984. A partir daí, Pascal se torna um dos melhores e mais complexos vilões dos últimos anos. Sempre usando o filho como justificativa para suas ações questionáveis, o antagonista acredita fielmente não estar fazendo o mal.
O mais fascinante em todo esse arco é que os poderes de Maxwell provocam o caos a partir das escolhas da humanidade. Todos possuem uma parcela de culpa, já que permitiram — em maior ou menor grau — serem dominados por instintos egocêntricos. Essa proposta abre margem para uma discussão muito mais rica sobre a nossa cultura, sem direcionar a responsabilidade para uma única pessoa.
Kristen Wiig — que interpreta Barbara Minerva — é um dos pontos altos da produção. A sua transição de tímida arqueóloga para Cheetah — uma femme fatale implacável — é excelente e lembra bastante o papel de Michelle Pfeiffer como Selina em Batman: O Retorno.
O ritmo dessa transformação é paciente e dá espaço para Kristen explorar todas as facetas de sua personagem. Portanto, quando a obra entrega que ela será uma das maiores oponentes de Diana, nós entendemos o porquê.
Minerva é uma mulher que cansou de ser invisível e insegura. Toda essa frustração em sempre ser deixada de lado resulta em uma fúria acumulada, que é descontada em todos que entrarem em seu caminho. Novamente, o roteiro toca em um ponto constante da história: o perigo de ser dominado pelos próprios medos e acreditar em uma verdade distorcida.
E claro, não podemos deixar de falar sobre Gal Gadot. Que a atriz nasceu para ser a Mulher-Maravilha, todos nós sabemos. Porém, em seu segundo filme solo a protagonista é apresentada por uma ótica muito mais vulnerável. Grande parte dessa fragilidade vem de seu reencontro com Steve Trevor (Chris Pine), que a faz questionar o seu papel neste mundo.
Diana precisa balancear seus interesses pessoais com as necessidades do planeta que ela nasceu para proteger. Esse conflito emocional é apresentado de maneira muito honesta e evidencia um dos maiores desafios de ser um super herói: priorizar os outros acima de si mesmo.
É louvável o quanto a produção se preocupa em ser mais do que apenas um filme de ação. De forma sútil, Jenkins evidencia as crises sociais e políticas que estamos vivendo, sem deixar de entreter.
Tecnicamente, a obra também não decepciona. Muitas cenas primordiais foram feitas com efeitos práticos — incluindo a transformação de Cheetah — e isso possibilitou visuais convincentes e imersivos. Inclusive, a abertura do filme dita o tom para o restante da história, já que apresenta uma competição de proporções épicas entre Diana e outras amazonas na ilha de Themyscira. Ao final dessa sequência, somos confrontados com alguns dos questionamentos morais que irão perdurar por todo o longa.
O lendário Hans Zimmer — responsável pela trilha sonora de clássicos como Gladiador e 007 — retorna para potencializar o impacto das cenas mais marcantes de Mulher-Maravilha 1984. O momento em que a heroína aterrissa dos céus com a sua armadura dourada será um clássico para os fãs do gênero, e os sons que acompanham a sua chegada triunfal apenas reforçam isso.
Seja voando em uma aeronave invisível ou enfrentando uma Mulher-Leopardo aterrorizante, Mulher-Maravilha entrega toda a magia que precisamos no momento, nos fazendo escapar da realidade sem deixar de conversar diretamente com a fase difícil que enfrentamos.
Assim como Diana, Cheetah ou Lord Maxwell, todos nós perdemos algo em situações caóticas. Mas como a heroína diz no longa, o melhor caminho — mesmo que seja o mais doloroso — sempre será o da verdade.