Minha conta
    Todas as Cidades do Norte
    Críticas AdoroCinema
    4,0
    Muito bom
    Todas as Cidades do Norte

    Espaços de isolamento

    por Bruno Carmelo

    Não há diálogos em Todas as Cidades do Norte. Dois homens sem nome vivem juntos numa construção abandonada no meio do mato, repleta de buracos indicando os pontos onde um dia existiram portas e janelas. Eles comem os frutos ao redor, fazem fogueiras para se esquentarem, dormem lado a lado, tomam banho, caminham. Mas nunca se falam, nem se tocam ou manifestam qualquer sentimento. O evidente contentamento com o local descarta a possibilidade de urgência ou precariedade: a vida ali se deu por algum motivo diferente da pobreza. Ainda que nada a priori os prenda ao local, eles evitam se deslocar ou manter contato com o mundo exterior.

    Esta micro comunidade idílica conserva os seus segredos, assim como vários outros elementos do filme que jamais serão explicados ao espectador. Os protagonistas possuem equipamentos elétricos, latas de spray e água em garrafa, o que implica alguma forma de contato com a sociedade. Mas o que fazem ali? A primeira opção seria a elaboração de um filme: outro homem aparece em quadro em certas ocasiões, com uma câmera profissional e um boom captando o som. Este poderia ser apenas o filme revelando seus bastidores, numa proposta de metalinguagem. Mesmo assim, alguém está filmando o homem que filma, logo, a questão do ponto de vista torna-se mais complexa.

    Outra possibilidade é ainda mais interessante: eles se isolaram nos escombros como forma de postura política, por desgosto em relação à vida urbana. Frases coladas à parede permitem compreender as ideias progressistas da dupla, avessas tanto à vida consumista quanto ao ideal de pegar em armas e transformar o mundo. Aqui, são os incomodados que se mudam: a revolução, caso possa ser considerada assim, é melancólica, solitária e silenciosa. Ao invés de um comunismo libertador, o mundo retratado no roteiro se assemelha a um núcleo neo hippie. Enquanto isso, uma voz off, desconectada das imagens, descreve histórias pessoais sobre amores e cidades.

    As narrações aprofundam-se especialmente na questão dos espaços, lançando uma questão essencial à organização das sociedades: são os seres humanos que devem se adequar às formas disponíveis, ou as construções devem ser feitas para se acomodarem aos homens? Dois exemplos são utilizados: a cidade de Lagos, na qual uma gigantesca estrutura foi erguida e depois abandonada por causa da crise econômica, e a cidade de Brasília, onde a vila operária foi inundada para dar lugar a um lago e manter a padronização estética e ideológica imaginada por Oscar Niemeyer. Em ambos os casos, os propósitos foram desvirtuados: habitantes pobres ocuparam os prédios fantasmas de Lagos, enquanto a lagoa brasiliense esconde casas inteiras em suas profundezas.

    Os episódios servem para perguntar de que maneira nos apropriamos das construções e como modificamos a natureza. Os personagens principais incendeiam cômodos, instalam tendas em quartos e tomam banhos sobre o concreto dos quartos, ao invés dos lagos ao redor, apenas porque podem fazê-lo. Eles buscam uma nova forma de experimentar os arredores, um meio diferente de ser no mundo. Por esta razão, apesar de solitária e egoísta, a proposta de convivência dos anônimos soa radical. A chegada de um novo homem – De onde? Por quê? – traz pequenas alterações à relação entre os dois amigos/amantes/companheiros. Gradativamente, Todas as Cidades do Norte permite que o afeto seja manifestado entre os ocupantes, ainda que em doses homeopáticas.

    Um dos elementos mais interessantes dessa vaga, porém carinhosa história humana é o fato de que, na ausência de explicações narrativas e elementos de condução do espectador (trilha sonora emotiva, reviravoltas, os próprios diálogos), o público é forçado a prestar atenção na construção das imagens em busca de pistas. Nesse quesito, o cineasta bósnio Dane Komljen demonstra grande prazer em comprimir espaços abertos num formato de tela quadrado, restrito e intimista, enquanto opta por enquadramentos perfeitamente simétricos, distribuindo prédios, árvores e pessoas na imagem como quem constrói prédios, numa espécie de arquitetura sentimental.

    Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.

    Quer ver mais críticas?

    Comentários

    Back to Top