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    Parque Tonsler
    Críticas AdoroCinema
    5,0
    Obra-prima
    Parque Tonsler

    De volta ao básico

    por Bruno Carmelo

    Parque Tonsler é um filme em que nada acontece – pelo menos, não no sentido mais comum do termo. Não existe narrativa nem conflito, não existe uma mensagem nem um princípio de linearidade. Durante 80 minutos, temos uma dezena de cenas nas quais funcionários de uma zona eleitoral em Charlottesville instruem os votantes sobre como usar as cédulas. O espectador sequer ouve as vozes dessas pessoas, pois o som direto está fora de sincronia com a imagem. Ou seja, em preto e branco e película granulada, temos uma sucessão de rostos falando a interlocutores invisíveis, recortados pelos planos próximos.

    Esta escolha provoca um efeito interessante: através de uma porção de quadros imóveis, todos impecavelmente fotografados nos rostos dos assistentes, criamos uma sucessão de camadas na imagem: vemos pessoas caminhando em direção aos funcionários, e outros passando em frente destes. Quanto mais próximos da câmera, mais desfocados ficam. Numa mesma imagem, quadrada e fixa, chegamos a ter cinco profundidades diferentes, cinco atividades simultâneas de pessoas distintas, umas delas perfeitamente nítidas, outras desfocadas ao limite do incompreensível. Em um único enquadramento, passamos do figurativo ao abstrato.

    Paralelamente, a saturação de atividades não se traduz em conflito: são dezenas de pessoas andando, caminhando, falando, pedindo, votando, mas na ausência de vontades contrárias, não surge a noção de narrativa. Para quem diz que se trata de um documentário em que “nada acontece”, talvez existam coisas acontecendo até demais. Entretanto, a retirada de elementos condutores do espectador (trilha sonora, narrativa, a ideia de “mensagem”) permite que o cinema retorne ao seu mínimo denominador: o que seria indispensável num projeto para ser considerado um filme – e não uma reportagem, um diário, um registro qualquer?

    O diretor Kevin Jerome Everson responde com a articulação de elementos-chave da linguagem cinematográfica. A dilatação do tempo força o espectador a perceber cada detalhe do enquadramento, cada linha dos rostos, compreender a situação e o estado de espírito daqueles personagens – uns sorridentes, outros aborrecidos – sem conhecer absolutamente nada sobre eles. O formato próximo do quadrado faz com que o público perceba o enquadramento como uma limitação, e sinta tudo que foi incluído ou excluído das bordas, tanto pela imagem quanto pelo som. As noções de fotogenia, de tempo, de espaço fora de quadro, de realismo e de verossimilhança são brilhantemente questionadas pelo projeto.

    Parque Tonsler resgata um tipo de cinema conceitual praticamente abandonado nos nossos tempos. Talvez experimentos do tipo ainda resistam em museus, mas possuem um sentido muito maior nas salas de cinema, as mesmas que exibem escapismos luxuosos como os filmes de super-herói e as grandes produções de aventura. Neste cinema feito para shopping centers, a montagem pretende ser invisível, o espectador é conduzido por uma montanha russa de emoções, em um produto pensado sob medida para agradar homens e mulheres, crianças e adultos, espectadores sozinhos e acompanhados por namorado(a)s. A obra de Everson representa o exato oposto deste cinema formatado, pensado obsessivamente em divertir, agradar, fazer o público esquecer os “problemas do mundo”. O documentário revela todos os seus artifícios, fazendo deles o próprio tema. Este é um cinema sobre cinema, a imagem sobre a imagem, de modo propositadamente incômodo, arrastado, desafiador. É uma forma de cinema que confia na inteligência de seu interlocutor e solicita um olhar ativo.

    Na sessão em que foi exibido, mais da metade do público se levantou e saiu. Alguns resmungaram, outros riram. Talvez isso faça parte da própria experiência: é difícil ficar indiferente diante de imagens tão longas, que nos olham enquanto as olhamos, que não parecem ser feitas para nós, e sim apesar de nós. O projeto desenvolve tamanha originalidade voltando ao básico, despindo-se também da maioria dos artifícios do cinema experimental de hoje: nada de colagens, sobreposições, intervenções extremas na representação e na realidade. O resultado perturba por sua simplicidade, por voltar ao que o cinema tem de mais precioso: sua ontologia fotográfica, seu modus operandi.

    Na época em que o público médio procura saber “o que o filme diz”, esta é uma obra focada em “como” diz – afinal, nada mais corriqueiro do que as frases repetidas pelos funcionários: “Dirija-se à cabine”, “Posso ver seus documentos?”. Esqueça a noção de dificuldade como valor, pois as imagens parecem ter sido facílimas de captar, e a edição pode ter sido igualmente simples. Em tese, qualquer um poderia fazer exatamente a mesma coisa, com uma câmera caseira. Talvez este seja o equivalente cinematográfico de uma pintura abstrata, ou de um poema concreto.

    Para completar a genialidade de Parque Tonsler, o diretor constrói um filme social através da estética: sem gritar uma única palavra sobre representatividade ou raça, ele fornece imagens protagonizadas exclusivamente por negros, associando-os à cidadania e ao voto. Existem tantas discussões, tanta reflexão embutida num procedimento tão simples que o resultado é nada menos que uma obra-prima, um filme raro, importante e marcante.

    Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.

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