Tanto os irmãos Benny e Josh Safdie quanto a produtora A24 merecem muitos elogios pelos trabalhos que tem feito – principalmente pelo fato de nos trazerem obras muito além das convenções básicas do cinemão hollywoodiano – falando da produtora, 2019 foi, de fato, um ano brilhante para o estúdio, que nos trouxeram trabalhos incríveis como Midsommar, O Farol e Anos 90, além de outros. E a dupla que dirige este Joias Raras merece palmas por fazer outro trabalho visceral e marcante – no mesmo (ou até superior) nível do drama Bom Comportamento de 2017, os irmãos surpreendem novamente por conceberem um trabalho com um nível apurado de técnicas, soluções criativas e um envolvimento com sua nada previsível trama que parece crescer a cada instante.
Joias Brutas é aquele tipo de filme que começa com situações aparentemente aleatórias para depois irem se tornando coisas sufocantes, tensas, engraçadas, divertidas, sensuais e culminando em um caos completo – só isso, funcionando perfeitamente, já demonstra a versatilidade de seus realizadores, mesclando muito bem elementos de suspense, drama e comédia para contar a história do judeu norte-americano Howard Ratner (Sandler), um dono de uma joalheria nova iorquina, que, para tentar pagar (ou melhor, “driblar”) as enormes dividas que tem com outros revendedores, artistas ou criminosos de procedência bem obscura, se envolve em negócios bastante complicados e cada vez mais ousados, como altas apostas em resultados de jogos de basquete, irritando muitos dos que devem para ele – principalmente, quando adquiri uma rara joia, vinda da Etiópia – em meio a isso, Howard se vê precisando dar atenção a sua família – sua esposa (Menzel), que ele está quase em processo de separação, seus três filhos e ainda com sua atual namorada (ou amante mesmo), Julia (Fox).
O roteiro, escrito pelos próprios diretores em parceria com Ronald Bronstein, é extremamente bem elaborado para não confundir o espectador com os inúmeros (e, muitas vezes, inusitados) personagens que surgem em tela – que vão de figuras fictícias que se misturam com outras reais – e isto é algo proposital, para causar uma sensação de realismo, que não deixa de ajudar na construção alucinada da tensão e do drama – a presença do astro do basquete Kevin Gartnett interpretando ele mesmo, assim como o astro da música pop, The Weeknd, são exemplos disso – aliás, o primeiro, é de fundamental importância na trama, conduzindo o espectador a torcer, inclusive, para que seu time vença os jogos, para que o protagonista Howard se dê bem nas suas tramoias.
Mas, antes de tudo, a maior – e talvez mais agradável – surpresa é a atuação precisa de Adam Sandler – e isso reflete algo que já disse antes: um ator, mesmo que limitado, quando conduzido por ótimos realizadores, pode proporcionar atuações marcantes – e, sem sombra de dúvidas, Sandler entrega em Joias Brutas sua melhor performance em anos – em 2001, sob a batuta de Paul Thomas Anderson, ele também surpreendeu dramaticamente, com Embriagado de Amor. Entretanto, agora, o ator das comédias bobocas é uma escolha tão acertada para o personagem, que, de fato, não consigo visualizar outro em seu lugar – seu timing cômico funciona imensamente aqui, por progredir junto com as confusões em que ele vai se metendo – embora sempre explodindo em suas falas, quando as coisas não dão certo, é muito interessante notar como Sandler demonstra junto disso a frieza de Howard, que, por mais que às vezes pareça inseguro, é um sujeito realmente inteligente e esperto, capaz de dar atenção conjunta em todo o emaranhado de cobradores que surgem em sua loja e, ainda, conseguindo lidar com os problemas familiares – é totalmente autentica sua preocupação com seus filhos, além de sua relação com sua atual namorada, vivida em boa composição de Julia Fox – além do contato que ainda tem com a mãe de seus filhos, vivida por Idina Menzel – com Sandler, ela protagoniza um dos diálogos mais curiosos da obra, quando Howard se mostra arrependido de algumas coisas na relação que tinham antes.
O restante do elenco, incorporando os rivais de Howard, é algo que daria orgulho até mesmo em Martin Scorsese – um dos mais perigosos cobradores do personagem de Sandler, é o vivido por Eric Bogosian, o tenebroso Arno – sempre com um olhar mortal e sério – que passa de um sujeito calado para explosivo em instantes – um tipo de persona parecida com papeis que Joe Pesci já fez em filmes como Os Bons Companheiros ou Cassino – mas creio que um destaque vá para o capanga Phil, que, na atuação de Keith Williams Richards, se torna um homem absurdamente grosseiro e arrogante – é praticamente impossível não odiar sua figura – o que mostra como o ator consegue incorporar perfeitamente o personagem, que, aliás, é o único que realmente parece amedrontar Howard de verdade.
Mas Sandler é, de fato, o que faz o filme nunca cansar – suas formas de lidar com tudo que acontece são a alma do longa – seja por drama ou comédia, seus fracassos, vão se tornando cada vez mais lamentosos para quem assiste – Adam prova como tem talento no único momento em que seu Howard realmente desaba em um desespero misturado com frustração – e, se nos pagamos com pena dele, é uma sensação ambígua que o projeto emana – aliás, desde suas primeiras cenas isso é visível – da descoberta da misteriosa e valiosa joia na Etiópia, onde um mineiro aparece com uma fratura exposta, enquanto outros dois entram em um túnel e finalmente encontram o objeto – onde a câmera mergulha em uma “viagem imaginaria” dentro da tal pedra preciosa, até sair dentro do corpo de Howard, em uma consulta médica – até na última cena, criando um arco e rima visual que simboliza perfeitamente as intenções e objetivos do personagem principal – que parece estar acima de qualquer banal julgamento de moralidade.
E tais sacadas visuais se estendem e ajudam todo o projeto – a fotografia de Darius Khondji é habilidosa em ir se fechando em cores menos claras cada vez mais – seu tom escuro é bastante apropriado para a tensão que sempre aumenta – sem falar que essas paletas mais escuras se misturam, inúmeras vezes com outras coloridas, como quando estamos na loja de Howard, com suas luzes azuis nos balcões de vidro, ou no show do The Weeknd, com luzes neon e vermelhas – mérito também da equipe de design de produção – aliados ainda a perfeita montagem do roteirista Ronald Bronstein e do diretor Benny Safdie – criando passagens de tempo perfeitas – como quando Sandler vai até o local de treinamento de Garnett e há um corte direto para a cena onde ele está para assistir a peça de teatro da filha, em outra cidade – assim como no terceiro ato, desde uma fuga inusitada da loja de Howard, passando pela tensão provocada por uma partida de basquete – sem mencionar o trabalho visceral e dinâmico da alucinante trilha-sonora de Daniel Lopatin, com músicas eletrônicas que conduzem tudo para uma espécie de “viagem alucinante”, soando realmente apropriada para o projeto.
Mostrando habilidade e criatividade em cada tomada do projeto, Joias Brutas é um caso perfeito onde um roteiro interessante dá de cara com diretores com liberdade criativa o suficiente para realizarem um trabalho que foge totalmente da bolha irrealista que infesta Hollywood nos últimos tempos – exatamente por isso, a produtora e diretores merecem aplausos – é um filme que provoca das mais simples até as mais complexas sensações em quem assiste – mesmo que você não concorde com todas as condutas do personagem genial incorporado por Adam Sandler.
Assim como as joias do titulo nacional, é um trabalho realmente bruto – autêntico e realista.