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    Borrasca
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Borrasca

    Noite de afogar as mágoas

    por Bruno Carmelo

    Para um filme adaptado de uma peça de teatro, Borrasca faz pouca questão de minimizar sua estrutura cênica. A ação se passa inteiramente dentro de uma casa, mais especificamente na sala de estar onde o anfitrião (Mário Bortolotto) recebe um amigo próximo (Francisco Eldo Mendes), que acaba de chegar de um velório. Eles bebem, falam da chuva lá fora, da traição que sofreram das esposas, da compulsão por álcool e drogas. Relembram Enzo, o amigo morto, com doses equivalentes de carinho e raiva.

    Transitando entre empatia e ironia, o texto reproduz as típicas “conversas de bar”, nas quais homens alcoolizados falam sobre os filhos da puta que botaram chifres em suas testas, sobre as bucetas que pretendem comer, sobre o trabalho de merda que desempenham em suas profissões. O linguajar é chulo, mas ao mesmo tempo, livre, naturalista. Aqui, os personagens empregam palavrões sem o desejo de choque do cinema-verdade, e sim porque possuem intimidade suficiente para tal, e por se encontrarem num ambiente seguro para dizer o que desejam, sem qualquer tipo de censura. Existe algo terapêutico nesta lavagem de roupa suja entre dois homens “que não são amargurados, e sim derrotados”, como eles mesmos precisam.

    Curiosamente, o realismo do vocabulário se choca com a artificialidade dos diálogos escritos em excesso, com a maneira declamada de pronunciar cada fala, como se os atores precisassem projetar a voz para o público ouvi-los lá no fundo do teatro. As palavras são articuladas demais, numa preocupação mais teatral do que cinematográfica. O diretor Francisco Garcia efetua um trabalho competente com enquadramentos e ambientação, explorando a fotografia atmosférica para sugerir a solidão, apostando em silhuetas e pequenos gestos que jamais ganhariam tamanho destaque sobre os palcos. Mesmo assim, esta narrativa movida unicamente por diálogos não se livra de certa estagnação. O tédio experimentado pelos personagens é transmitido igualmente ao espectador, numa escolha que tanto permite belos momentos de silêncio quanto transforma a narração em algo arrastado, de pouco relevo.

    “Eu gostava do Enzo. Ele comeu a minha mulher, mas eu gostava dele”. O personagem mais interessante desta história está ausente das imagens: Enzo, o amigo morto, é descrito como um homem irresistível, forte no álcool e nas drogas, divertido de conversar. Por estas virtudes, os colegas não conseguem detestá-lo, mesmo quando ele “come” a esposa do anfitrião. “Ele também teria comido a minha esposa, se eu tivesse uma”, concorda o amigo. Assim como Jolene da famosa canção folk, a amante irresistível que a esposa não deixa de admirar, Enzo se transforma em modelo de virilidade para os colegas, colocando seu prazer sexual acima de qualquer código moral e ético. Por isso, os amigos não cessam de respeitá-lo: se tivessem um magnetismo sexual equivalente ao do amigo morto, certamente teriam “comido” o mesmo número de esposas alheias.

    Borrasca efetua um retrato ambíguo da masculinidade contemporânea. Por um lado, estes homens fracassados não têm esposa/namorada, nem sucesso no trabalho, ostentando certo orgulho em não precisarem de ninguém. Por outro lado, veneram o macho alfa do grupo, que parece ter morrido justamente por levar a vida mais intensamente do que eles. Para sustentarem suas vidas tristes, revestem o ressentimento de falso orgulho, transformam a inveja em descaso. Não seria absurdo sugerir uma atração homoerótica dos protagonistas por Enzo: depois da traição, quem desperta real desejo é o conquistador, e não a mulher conquistada.

    Gabriel e Diego terminam o filme com suas visões de mundo intactas, afinal, a tempestade lá fora não passava de uma borrasca, os danos foram pequenos, e eles terminarão por se reconstruir. O espectador presencia um parêntese na vida de dois homens que revelam as suas fragilidades durante uma noite só, transparecendo sentimentos que ocultariam em outras circunstâncias. Passada a chuva, eles saem para a rua, atrás de junk food e pensando em adotar um cachorro. Mudam de assunto, é claro. Dificilmente conversarão sobre isso novamente. Amanhã vai ser outro dia.

    Filme visto no 13º Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, em julho de 2018.

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