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    Morto Não Fala
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Morto Não Fala

    Gore brasileiro

    por João Vítor Figueira

    Por vezes o cinema de terror é erroneamente referido como um tipo de entretenimento meramente reativo, um cinema de escapismo feito apenas para provocar reações mais físicas do que intelectuais. Qualquer olhar mais sério e menos preconceituoso para o gênero ajuda para perceber que esse tipo de filme é capaz de costurar comentários profundos sobre os medos e anseios de uma sociedade. Morto Não Fala, de Dennison Ramalho, apresenta um interessante comentário sobre violência urbana e dialoga tematicamente com produções recentes do cinema nacional, como Trabalhar Cansa, ao propor um terror que parte de questões tipicamente periféricas.

    Com roteiro de Ramalho e Claudia Jouvin, com base nos contos de terror do jornalista Marco de Castro, o filme leva Daniel de Oliveira para mais uma atuação intensa após Aos Teus Olhos e 10 Segundos para Vencer. O ator vive Stênio, retraído plantonista noturno de um necrotério que tem a capacidade de conversar com os cadáveres. Na definição de um traficante morto pela ROTA, tropa de elite da PM paulista, o protagonista é "a última voz que eles vão ouvir antes de conversar com o Diabo". Os segredos que o personagem escuta dos mortos o levam a quebrar uma regra não escrita e usar as confidências mórbidas para arquitetar a morte de Jaime (Marco Ricca), amante de sua esposa, Odete (Fabíula Nascimento). Tal ato desencadeia uma espiral de pânico na família de Stênio e faz dele, seus dois filhos pequenos e a inocente Lara (Bianca Comparato), filha de Jaime, os alvos de uma fúria sobrenatural.

    Saltam aos olhos os méritos estéticos deste projeto. Mergulhando em cheio na explicitude do terror gore, o filme investe pesado nas cenas mais gráficas ao representar a rotina de autópsias no IML. Membros decepados, litros de sangue falso, vísceras expostas, estados de putrefação... Tudo isso faz parte do léxico visual do filme. Rodado em sua maior parte em ambientes internos, Morto Não Fala tem na fotografia texturizada de tons esmaecidos e cinzentos uma adequada representação do estado de espírito de Stênio. Os momentos em que os cadáveres falam são repletos de bizarrice, causando uma bem vinda estranheza em função da fusão de efeitos práticos e digitais, mas tal estranheza está em sintonia com a emoções que as cenas visam suscitar no longa-metragem. Entre os aspectos técnicos, porém, é preciso ressaltar que o trabalho de som ganha um protagonismo maior do que deveria quando uma vez que o filme parece abusar de ruídos extremamente acintosos como uma muleta para alguns sustos.

    Ao optar por olhar para uma figura tão underground quanto um técnico do IML, o filme evoca os medos sociais da violência urbana que retroalimentam discursos políticos abrasivos e coberturas policiais de telejornais sensacionalistas. Morto Não Fala parte de realidades concretas das periferias brasileiras — morte de traficantes, feminicídio, crimes passionais, presença da religiosidade evangélica — para o lado fantasioso que atrai o pior de seus protagonistas. É como uma visita a uma espécie de "deep web" da vida real.

    O roteiro opta por um retrato um tanto dúbio da principal figura feminina do filme, Odete, no que é a questão mais problemática do enredo. Mesmo sendo ela a vítima de um machismo mesquinho, o roteiro parece trabalhar para que Stênio, com todo o seu egoísmo, seja tratado de maneira mais empática e reste a mulher, em vida ou depois, o status de megera. Até faz, de certa forma, sentido no universo criado pelo longa-metragem que o espírito de Odete adote uma postura tão agressiva em um mundo tão impiedoso para todos eles. Entretanto, não teria feito mal pontuar de maneira mais clara que Stênio deveria ser o grande vilão da história.

    O balanço entre o realismo do universo do IML e a fantasia proposta pela abordagem sobrenatural se dá de maneira um tanto bruta, uma vez que o filme parece ter duas seções distintas que até dialogam entre si, mas sem a naturalidade adequada. Em sua segunda metade, o longa se torna mais um filme sobre uma casa mal assombrada do que um filme sobre um homem que conversa com cadáveres, recurso que poderia ter sido melhor explorado. O caminho rumo ao clímax também se esgarça demais, com novos elementos e situações pipocando na tela a cada nova virada de enredo. Ainda assim, o filme é eficiente em criar situações de terror genuíno, como a primeira cena em que as crianças do elenco têm um contato com as forças sobrenaturais, na aflitiva cena do cerol, na perturbadora cena de sexo oral. O final aberto que dá margem para uma sequência ou o desdobramento em uma série de TV, o que frustra quem esperava um desfecho mais consistente. Com todas as reticências, Morto Não Fala é um filme competente que, mesmo com suas falhas, traz boas atuações, uma atmosfera extrema e representa um êxito honesto em sua proposta de fazer um terror urbano brasileiro.

    Filme visto no 20º Festival do Rio, em novembro de 2018.

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