O diário na era do selfie
por Bruno CarmeloLucia Luz é uma jovem Síria refugiada no Brasil. Depois de mais de dois anos em território brasileiro, decide visitar a família no Kuwait, filmando a viagem a pedido do diretor João Marcelo. O espectador acompanha cada passo do processo: a ida ao aeroporto, a trajetória para casa, o cansaço da chegada, a nostalgia da partida. A maior parte do material é filmado pela própria Lucia, ciente da apropriação futura de seus vídeos.
Este ponto de partida distingue o projeto de outros documentários feitos a partir de material gravado por terceiros, como Pacific e Doméstica. Neste caso, as imagens foram elaboradas com intuito explicativo por Lucia, e sob controle de João Marcelo ao longo do processo, mesmo à distância. É o cineasta quem extrai da protagonista confissões sobre a guerra na Síria e sobre o status da minoria católica no país, da qual a jovem faz parte. Nos outros momentos, Lucia capta aquilo que julga interessante. Como muitas pessoas de um mundo globalizado, e sem conhecimentos específicos sobre a linguagem do cinema, ela grava o percurso através da linguagem do selfie.
A Casa de Lucia torna-se uma impressão imediata da personagem, que não estabelece hierarquia entre filmar uma manifestação em defesa de crianças na Síria e apresentar os produtos mais desejados no free shop. Na época em que tudo pode ser visto e tudo pode ser mostrado, ela dedica tempo considerável à própria imagem, à própria fala. A montagem não separa o joio do trigo, dedicando um tempo superior aos relatos de cansaço e de festas familiares do que aos fatores que a levaram sair de seu país, escolher o Brasil, estudar determinado curso ou trabalhar em determinada área. A estética do selfie poderia despertar interesse como sintoma de uma época, mas a direção não demonstra interesse especial no questionamento metalinguístico.
O ponto fraco do projeto não são as imagens amadoras captadas em celular, e sim a falta de interesse da direção em confrontá-las com outras imagens, capazes de conferir maior relevo ao conjunto e ampliar o escopo do debate. Impossibilitado de viajar com Lucia pela falta de visto, João Marcelo poderia, por exemplo, ter a câmera na mão de outras pessoas, usar imagens de arquivo, brincar com a dissociação entre som e imagem (a voz off sobreposta a momentos não-referentes), em suma, buscar fricções e construções próprias. No entanto, o projeto se contenta com a iniciativa de uma pessoa interessante e simpática, porém pouco disposta a debater política internacional ou especificidades socioculturais.
A Casa de Lucia agrada acima de tudo pelos aspectos que escapam ao diário pessoal. A celebração do Natal num país predominantemente árabe, as músicas, os doces e costumes são vistos como pano de fundo para a imagem sorridente da protagonista. Na conclusão, um letreiro informa o número exato de refugiados sírios no Brasil e a dificuldade encontrada ainda hoje no processo de admissão no país. Ora, era exatamente este contexto que as imagens poderiam, de certo modo, transparecer – sem a obrigação de didatismo, é claro. Havia uma oportunidade preciosa de confrontar mundos, culturas, de extrair representações da solidão e do deslocamento, acenando para uma situação política carente de reflexões. O projeto aposta na força de um modesto relato unilateral, ainda que evidentemente empático.
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.