O natural e o artificial
por Bruno CarmeloO filme se abre com a narração de uma lenda, explicando como teria se formado o relevo terrestre e de que modo forças transcendentais teriam moldado a configuração da vida humana. “Não se deve cavar nas profundidades da terra”, conclui-se. Logo em seguida, um personagem relata outra lenda, sobre uma montanha desaparecida, deixando vazio o lugar onde existia. O local da montanha ausente teria se revestido de valores mágicos aos olhos dos habitantes.
Navios de Terra busca uma curiosa mistura do realismo com o lendário, do fatual com o imaginário. Por um lado, temos belíssimas imagens aéreas das ondas do mar enlameado, propícias à narrativa fantástica e ao ponto de vista divino. Por outro lado, dois tripulantes de uma grande embarcação conversam sob a luz natural, em som prejudicado pelo ruído do vento, trazendo hesitações típicas do linguajar cotidiano. A transição de estilos também é geográfica: a trama sai do Brasil, onde a concretude das máquinas sugere o realismo, à China, terra em que elementos mágicos possuem um papel mais forte na vida dos indivíduos.
O personagem unindo os dois mundos é o tripulante interpretado por Rômulo Braga. Ele às vezes se comunica com diálogos artificiais, incomuns à linguagem oral, às vezes conversa da maneira mais despojada possível. Nunca sabemos em que área do navio este trabalhador realmente opera, nem o vemos efetuando qualquer tipo de atividade. Ele perambula pela estranha embarcação fantasma onde parecem existir apenas dois personagens constantes, com alguns coadjuvantes surgindo para suprir as necessidades do roteiro, e desaparecendo logo depois. Sem psicologia nem motivações definidas, o protagonista torna-se um sujeito opaco, de difícil identificação.
Ele transmite a indefinição do projeto como um todo: na alternância entre dois mundos, a direção não se aprofunda em nenhum deles. Poderíamos ter uma exploração do realismo, do improviso semidocumental (a exemplo da conversa com os coadjuvantes em seus quartos), ou então o território simbólico da natureza afetando a vida humana, como nas obras poéticas de Naomi Kawase. Ambas seriam alternativas viáveis, porém a alternância de uma a outra produz a sensação de uma abordagem comedida demais para discutir a magnitude da geografia, do tempo e do espaço.
Por isso mesmo, talvez seja melhor pensar em Navios de Terra por trechos separados: a diretora Simone Cortezão consegue extrair cenas impressionantes das partes altas do navio, com Rômulo Braga comprimido pela gigantesca paisagem ao redor, ou dividindo o espaço com maquinarias e compartimentos de ferro. Entretanto, as cenas nos quartos e banheiros constituem o oposto em termos estéticos: o som direto beira o incompreensível, a fotografia não consegue imprimir texturas e volumes, os enquadramentos tornam-se visivelmente limitados.
Paralelamente, o retrato da natureza nublada na China tem grande potência diante do caos urbano. É uma pena que a chegada a estas montanhas seja feita através de conveniências narrativas, como a aparição abrupta do homem disposto a conduzir o protagonista ou o recado deixado pela acompanhante noturna. Imagens cuidadosas convivem com outras transparencendo restrições da produção. Na duração enxuta de 70 minutos, os estilos não se contaminam, apenas ressaltam o abismo que os separa.
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.