O mistério do duplo
por Bruno CarmeloObservação: É muito difícil falar de Nós sem discutir pontos importantes da trama. Por mais que o texto abaixo se esforce em não estragar nenhuma surpresa, fique atento para possíveis spoilers!
Sob o solo dos Estados Unidos, existem vários túneis que não levam a lugar nenhum. Dentro de uma sala de aula, dezenas de coelhos ficam presos em suas jaulas. Na década de 1980, uma garotinha sofreu um trauma no labirinto de um parque de diversões. Nos dias de hoje, uma jovem mãe se recusa a viajar com o marido e os filhos para a praia. O início desta trama apresenta informações aparentemente aleatórias, fragmentadas, sem desenvolvimento. Um forte senso de ambientação trata de unir estes símbolos através da trilha sonora e da montagem: sabemos que eles voltarão, mais cedo ou mais tarde, e que farão parte de uma história única.
O espectador se encontra diante das peças separadas de um amplo quebra-cabeça, criado com esmero pelo diretor e roteirista Jordan Peele. Se em Corra! (2017) ele propunha uma alegoria política próxima da realidade – com referências a Barack Obama, por exemplo –, desta vez ele mergulha num pesadelo metafórico, aberto a uma infinidade de leituras, e coroado por uma produção maior e mais ambiciosa. Nós é o tipo de obra que teria sido impossível como filme de estreia, mas foi concretizada graças ao sucesso retumbante da empreitada anterior. Peele ganhou carta branca para fazer o que quisesse, e o resultado é um projeto raríssimo no circuito comercial, buscando equilibrar ambições filosóficas e convenções do terror. Em outras palavras, Nós se aventura pelo pantanoso terreno que une o cinema “de arte” ao cinema popular.
Aos poucos, o filme prepara o espectador para o confronto com a figura do duplo. A presença de irmãs gêmeas e os reflexos no espelho se encarregam da ideia da cópia idêntica, enquanto os duos aranha verdadeira/aranha de brinquedo e coelho verdadeiro/coelho desenhado ilustram o duplo enquanto representação artística, decalque do real. Quando Adelaide (Lupita Nyong’o) encontra uma mulher idêntica a si mesma, o que estaria acontecendo? Seria uma irmã gêmea, um clone, uma impostora? Uma ilusão, uma alucinação coletiva? A metade malvada, vestida de vermelho, em oposição à metade bondosa, de roupas claras? Questionados sobre a sua identidade, os outros respondem: “Somos americanos”. No entanto, os duplos têm nomes distintos, além de leves diferenças no corpo: a mãe possui os braços tatuados, o filho revela o rosto queimado. Seria a mesma diferença entre a aranha de brinquedo e a aranha real?
Além de se revelarem aos personagens, os alter-egos pretendem eliminar os originais. Cada personagem duplicado deve enfrentar portanto a sua própria “sombra”, como é chamada. Como combater a si mesmo? Alguém com as mesmas forças e fraquezas que você? Nós surpreende pela construção impecável das imagens: Jordan Peele controla em detalhes cada enquadramento, cada inserção da trilha sonora dissonante e perturbadora, cada adição de um humor inesperado dentro de um contexto tão tenso. O formato da tela em scope é bem utilizado, enquanto os atores são conduzidos com precisão, tanto em sua metade realista (despojada, informal, cômica) quanto na metade alegórica (com os corpos tensos, os risos artificiais). O aspecto mais interessante do confronto entre duplos é perceber como estas partes se complementam, constituindo duas versões de um único ser – como se todos nós contivéssemos a identidade civilizada e a identidade monstruosa, ambas lutando para tomar à frente. Psicólogos e psicanalistas se deliciarão com esta trama.
Outra ousadia de Nós se encontra no ritmo: para uma produção de terror, as cenas são muito mais lentas do que qualquer outra produção de Jason Blum. Peele aposta numa narrativa questionadora, com direito a um longo discurso de Red (também Lupita Nyong’o) interrompendo um ágil momento de terror, além de encontros dilatados com os duplos substituindo os tradicionais sustos do horror-espetáculo. O fato de os adversários serem uma versão dos protagonistas demora a surtir efeito na trama: durante boa parte do confronto, o inimigo poderia ser um ladrão qualquer, até que o filme enfim aprofunde sua simbologia e desvende uma série de segredos guardados para o final.
Talvez a habilidade dos duplos em pensar como os originais, antevendo a ação destes, pudesse ser utilizada de maneira mais eficaz pelo roteiro, ainda que seja explorada a contento rumo à conclusão. Em paralelo, a arriscada decisão de separar os quatro membros da família gera um desafio ainda maior para a montagem e para o espectador, que precisa situar onde exatamente se encontra cada original e cada duplo – como pode se perceber, o espectador é igualmente inserido no labirinto. Ao contrário de Corra!, a revelação final não esclarece todas as dúvidas, e sim embaralha as peças que acreditávamos ter juntado até então – para formar, quem sabe, uma nova imagem.
Ao final da sessão, os espectadores demoravam para se levantar da cadeira, hipnotizados pelo que acabavam de ver. Por tantas ousadias narrativas e simbólicas, Nós não é um filme muito fácil de desvendar, a exemplo de um cofre bem protegido que, uma vez aberto, possui outros cofres dentro. Caso consiga suscitar uma boa resposta do público médio, terá conquistado uma proeza considerável. O diretor embute uma complexa discussão racial e de gênero num feel good movie; insere o nível de exigência do cinema “de arte” num formato acessível; combina o humor escrachado com cenas sangrentas; atinge um requinte de produção que parece muito mais caro do que os US$20 milhões do orçamento. Com apenas dois filmes no currículo, Jordan Peele se torna um dos diretores mais interessantes de sua geração.