A máfia e a fábula, o horror e a frieza
por Rodrigo TorresA Sicília é mística e fria no novo filme de Antonio Piazza e Fabio Grassadonia. Diferente do cinema italiano tradicional e de seu trabalho anterior, Salvo, a dupla foge completamente das características historicamente atribuídas ao seu paese para compor uma obra soturna e fabulesca. O objetivo é claro: assim evocar o medo e o horror quase sobrenatural provocado pela máfia em sua tenra idade. Metaforicamente, O Fantasma da Sicília é o pavor gerado pelo crime organizado na Itália na década de 1990; cinematograficamente, o filme é a concretização artística da memória traumática dos realizadores.
Em termos mais objetivos, porém, o longa-metragem reconstitui de maneira fantástica uma história real: o sequestro do jovem Giuseppe como represália às delações do pai mafioso, Santino Di Matteo. Após 25 meses de cárcere e a poucos dias de seu aniversário de 15 anos, o garoto é estrangulado e dissolvido em ácido. Esse caso terrível representa tantos outros, um período conturbado em que o Estado italiano saiu à caça da máfia local e o pavor gerado em Piazza, Grassadonia e todo o povo siciliano. Na ficção, resiste a exceção de Luna (Julia Jedlikowska), uma garota que não se conforma com o desaparecimento do melhor amigo e sai em busca de Giuseppe (Gaetano Fernandez).
Apesar de sombrias, as lembranças dos cineastas são nostálgicas, o que resulta em um filme plural, ousado e não necessariamente coeso. Isso porque O Fantasma da Sicília também se dedica a contar a jornada de transformação de Luna, com todos os ecos de um coming of age americano oitentista: a rebeldia da protagonista diante dos pais, a vida e as brigas na escola, os dramas de uma pessoa na fase mais delicada de sua existência etc. A música pop, o figurino esportivo e lampejos de comicidade farsesca compõem a saudade de um tempo passado. Todo o resto se dedica a uma construção surpreendentemente fantasmagórica.
O vilarejo em que O Fantasma da Sicília é ambientado fica no limite de um bosque. Como no neoclássico Conta Comigo e na fábula literária Chapeuzinho Vermelho (inspirações manifestas), a floresta é um lugar perigosamente lúdico que abriga o desconhecido, o mistério, a morte — que apavoram um jovem tanto quanto a vida em um momento de mudanças rumo à fase adulta. Ambientes escuros, animais mortos, casas rústicas, ambientes claustrofóbicos evocam toda essa opressão, extensiva ao efeito da máfia no povo local. Toda essa elaboração simbólica também rende momentos de multissensorialidade, proporcionados por um belo trabalho de desenho de som, fotografia e edição, como antes alcançado pelos realizadores em Salvo.
Antonio Piazza e Fabio Grassadonia ainda exploram o campo onírico para ilustrar a esperança de Luna em encontrar Giuseppe e, assim, o amor dos jovens — tão em falta por parte de suas mães, visualmente retratadas como bruxas e psicologicamente movidas por um desespero particular que as impede de amar os próprios filhos. Infelizmente, porém, tantas informações e alegorias se articulam de modo truncado, se concretizam pela metade e por vezes soam dispensáveis. O resultado é um longa-metragem incomodamente arrastado, como se pudesse ser melhor se mais enxuto e focado em menos subtemas.
Uma síntese dessa problema é a ambição de Piazza e Grassadonia em reimaginar a morte de Giuseppe. A sequência de horror é filmada com tamanho apuro estético (e sofisticação: extracampo, elipses, contraplongeé etc) que o despejo dos restos mortais do rapaz em um lago, mesmo quando perceptíveis suas partes orgânicas, tem um efeito tanto lírico quanto frio. Uma dose maior de pungência faria mais jus à natureza terrível do acontecimento — motivo principal do longa-metragem e signo dos fantasmas que assolaram a Sicilia nos anos 90.
Filme visto no 8 1/2 Festa do Cinema Italiano Brasil 2017