Manual de sobrevivência
por Bruno CarmeloComeçamos no caos. Várias crianças gritam, brincam, brigam. A câmera do diretor Gustavo Rondón Córdova desliza de um rosto a outro, de uma ação a outra, enquanto as falas se misturam aos sons das ruas, dos carros e das pessoas nos bairros periféricos de Caracas. Os meninos impúberes descrevem suas posições sexuais preferidas, manejam armas e ditam as regras no grupo, numa simulação grosseira da vida adulta. No início de A Família, não existem pais ou responsáveis, apenas crianças vivendo sozinhas, abandonadas e ainda assim cercadas por pessoas de todos os lados.
Aos poucos descobrimos nosso protagonista, Pedro (Reggie Reyes), órfão de mãe e distante do pai Andrés (Giovanny García), que passa o dia inteiro trabalhando ou fugindo do cenário desolador de seu bairro. A direção acompanha o garoto com a câmera na mão, tensa mas compenetrada, captando desde os silêncios até o momento em que, numa briga, fere gravemente o colega de uma comunidade local. Treinado para a virilidade a qualquer preço, ele não demonstra remorso e mostra-se disposto a enfrentar a família do adversário, porém o pai compreende a gravidade do caso e foge com o filho para um lugar distante.
Córdova adota uma cartilha cinematográfica semelhante à dos irmãos Dardenne: a partir de um incidente de fundo social, acompanha seus personagens pobres numa série de conflitos decorrentes de suas origens e situações socioeconômicas. O roteiro evita artifícios externos (doenças repentinas, encontros providenciais), privilegiando elementos intrínsecos à rotina de dois moradores de um bairro pobre: a fome, o cansaço, a falta de oportunidades, o medo da violência. Esta violência aparece não só nos gestos e nos diálogos bruscos, mas também nas escolhas estéticas: a direção é brusca, o trabalho de som é propositadamente “sujo”, a edição imprime o tom de urgência e a fotografia busca impregnar a imagem com o suor das peles, a textura dos muros descascados e a poeira das ruas.
Embora seja evidente o afeto entre Andrés e Pedro, A Família não abre espaço para que expressem ternura. No cenário de sobrevivência, o carinho é objeto de luxo. Talvez por isso o resultado soe tão árido, e também por isso os pequenos silêncios partilhados entre pai e filho se transformem em belos momentos de cumplicidade. A interação da dupla central é beneficiada pela atuação excepcional do garoto Reggie Reyes, muito intenso a cada cena, expressivo em todos os seus desconfortos e indignações. Percebendo o talento do jovem intérprete, a câmera cola-se a seu corpo e seu olhar sempre que possível. Reyes parece ao mesmo tempo espontâneo demais para um ator formado e completo demais para um ator iniciante.
A Família se encerra como ótimo exercício de hiper-realismo cinematográfico, do tipo que aposta na observação atenta, mas não se presta a investigar a origem dos problemas, nem oferecer possíveis soluções. Apesar da bela cena final, pode resultar duro demais para espectadores que buscam, em meio à adversidade, alguma forma de poesia do cotidiano (caso de Pelo Malo ou Las Acacias, por exemplo). Mesmo assim, consegue fugir à armadilha dos julgamentos de valor em relação aos personagens, construindo duas figuras humanas complexas e verossímeis.
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.