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    Henfil
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Henfil

    "Tô vendo a esperança"

    por João Vítor Figueira

    Todos os gêneros cinematográficos têm seus códigos próprios e o documentário não é diferente. O cinema não-ficcional traz suas armadilhas e suas possibilidades e cabe a um cineasta saber usar a linguagem à favor do discurso que pretende passar em suas obras. Em Henfil, a diretora Angela Zoé (Meu Nome é Jacque) tem a tarefa de abordar a intensa vida de Henrique de Souza Filho, cartunista que se levantou como uma das mais ácidas e inteligentes vozes de crítica social e comportamental no Brasil dos anos da ditadura militar. Para isso, a cineasta optou por mesclar uma estrutura de documentário tradicional (com imagens de arquivo, entrevistas antigas do biografado, depoimentos de pessoas próximas à figura principal) com uma arriscada proposta: Construir a narrativa enquanto acompanha um grupo de jovens estudantes transformarem algumas das principais criações do artista em animação. A decisão é original, mas as duas frentes do filme não são igualmente interessantes.

    Dono de traços singelos, mas expressivos, e palavras espirituosamente sarcásticas, Henfil escreveu seu nome na história da imprensa brasileira graças aos trabalhos como cartunista no incendiário tabloide O Pasquim. Com uma participação indelével na construção do status antológico da publicação carioca, ele apresentou nas páginas do semanário personagens clássicos como Ubaldo, Graúna, Cangaceiro Zeferino, Bode Orelana e os Fradins. Suas criações que partem de sátiras de figuras da vida brasileira cotidiana e ajudam a compor uma crônica sobre os anseios e medos de um país em transformação.

    Os depoimentos dos cartunistas Jaguar e Ziraldo, dos jornalistas Lucas Mendes, Sérgio Cabral e Tárik de Souza, e da irmã Glorinha são acompanhados de forma honesta. Entre as anedotas, uma das mais engraçadas diz respeito à série de ilustrações do Cemitério dos Mortos-Vivos, peças mordazes criadas por Henfil durante o repressivo governo Médici, marcado pelo acirramento das práticas de tortura contra opositores ao regime. Nos desenhos, o artista "que não perdoava ninguém" sepultava figuras da vida pública brasileira que, em sua visão, mostravam simpatia à ditadura. O caso do "enterro" simbólico de Elis Regina — retratado de forma artificial na problemática cinebiografia Elis — toma destaque e revela-se ainda mais interessante ao mostrar que da rusga entre o ilustrador e a cantora nasceu uma amizade. Em outro momento, é revelado que Fernanda Montenegro e Clarice Lispector também receberam a mesma "homenagem" do artista e que Carlos Drummond de Andrade só não foi alvo da caneta "mortal" de Henfil porque Ziraldo vetou.

    A hemofilia, doença da qual Henfil e seus irmãos — o sociólogo Betinho e o músico Chico Mário — eram portadores e que havia sido herdada da mãe do cartunista, ocupa um espaço considerável no filme, mas é notável o quanto a morte é abordada de forma leve, natural. O filme está mais interessado em dissertar sobre como a condição de saúde impulsionou o artista a viver o máximo possível no tempo de vida que teve, relembrando suas aspirações para além das ilustrações, incluindo seu trabalho no livro Diário de um Cucaracha e na direção do pouco lembrado filme Tanga (Deu no New York Times?). "Eu acho que a hemofilia dava uma certa urgência na vida", descreve a irmã Glorinha.

    Em determinados momentos, há a impressão de que a montagem apenas seleciona as falas mais elogiosas das entrevistas e as que dão mais ênfase nos feitos profissionais de Henfil do que em sua vida pessoal. O ocasional desfile de adjetivos é um ponto fraco. Em contraste, a obra é engrandecida pelo ótimo trabalho de pesquisa feito por Zoé nas imagens de arquivo, o que pode ter relação com o fato de que a diretora produziu Betinho - A Esperança Equilibrista, sobre o irmão do cartunista. A imagem de Henfil filmado em momentos espontâneos por uma câmera Super 8, humaniza bastante a figura-tema do documentário. O uso de entrevistas antigas com o próprio Henfil é uma forma do filme expor as ideias do homenageado por ele mesmo. As cartas antigas do desenhista para sua mãe também constituem momentos belos, impulsionados por uma delicada trilha sonora com timbres naturalistas de violão e piano.

    O resgate da obra deste ativista dedicado — foi Henfil quem cunhou o termo "Diretas já!", apenas para citar uma de suas contribuições ao debate político brasileiro — proposto por Angela Zoé chega em um momento em que as ideias do artista se mostram atuais e necessárias. Acompanhar o desenvolvimento de uma animação com os personagens de Henfil paralelamente aos outros enfoques do documentário é sim uma tarefa menos interessante do que o restante da narrativa deste filme, mas ao menos isso é recompensado pelos ótimos créditos finais. Quando a singela Graúna, a ave-exclamação, encerra a projeção, não há como pensar em como podemos ressignificar e almejar poder dizer novamente a frase mais famosa da personagem: "Tô vendo a esperança".

    Filme visto no 22º Cine PE – Festival do Audiovisual, em junho de 2018

     

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