O conforto de um humor datado
por Sarah LyraÉ sempre um exercício interessante imaginar como os realizadores de um filme conceberam as ideias concretizadas em tela. No caso de O Amor Dá Trabalho, o questionamento pode ir além, no sentido de tentar entender por que algumas características datadas do Cinema e da comédia continuam sendo empregadas como recurso para criar humor. O longa dirigido por Alê McHaddo funciona melhor quando não está se esforçando tão desesperadamente para ser engraçado, ou quando não está inserindo piadas escatológicas e preconceituosas, principalmentes aquelas que deixam implícitas mensagens machistas, homofóbicas, gordofóbicas e etaristas para gerar gargalhadas. É na descrição de um suposto inferno, onde não existe cafezinho ou fins de semana e todos os dias são uma oportunidade para festas da firma, que o longa poderia ganhar força. É uma pena que o roteiro decida abrir mão desse potencial para apostar em um humor que vai na contramão de tudo que se debate na sociedade hoje em dia.
E nem é o "politicamente incorreto" — que muitos acreditam ser necessário para a comédia, como se ela estivesse isenta de qualquer problemática social — o maior incômodo gerado pela produção, e sim a falta de ambição para criar algo fora do lugar comum, para elaborar um humor que ofereça frescor e originalidade de alguma forma. São diversas as menções a loiras serem burras, mulheres solteiras com mais de 40 anos serem "encalhadas", periquitos como referência sexual de duplo sentido, idosos serem inúteis e desprovidos de qualidade de vida, objetificações do corpo feminino, além de piadas reforçando o estereótipo de religiões afro-brasileiras estarem associadas a magias obscuras. Isso sem falar da escolha de inserir falas em inglês sem um critério aparente. Ainda não superamos esses clichês?
Críticas ao humor à parte, o filme também se mostra problemático ao não aprofundar as personalidades, anseios e dificuldades de seus personagens. Elisângela (Flávia Alessandra) é uma mulher vegana (o que evidencia algumas de suas convicções morais), independente e tem seu próprio negócio. Ainda assim, ela não hesita em dar uma nova chance a Paulo Sérgio (Bruno Garcia), que a abandonou no altar doze anos antes, não lida com os traumas gerados pelo desaparecimento repentino do ex-noivo e sequer o questiona acerca do ocorrido. O roteiro coloca a protagonista na posição incoerente de buscar a companhia e aprovação de Paulo Sérgio, sendo que é ele quem mais deveria temer um possível confronto por parte da ex-namorada. Além de evitar os conflitos tão essenciais para o desenvolvimento de qualquer trama, O Amor Dá Trabalho minimiza as poucas problemáticas apresentadas. O roteiro até sugere um mistério por trás da fachada aparentemente irresistível de Paulo Sérgio, mas isso não explica por que Elisângela está disposta a perdoar um homem que nem ao menos demonstra remorso pelo que fez.
A Paulo Sérgio cabe a função de ser atraente, bem sucedido e rico, o que o longa faz questão de apresentar como o típico bom partido. Pouco importa seu caráter, os motivos que o levaram a cometer um ato tão egoísta ou o fato de nunca ter pedido desculpas à Elisângela, a associação com George Clooney, repetida exaustivamente, é alçada como suficiente para o público acreditar que estamos diante de um homem digno de redenção e amor. Nem mesmo o painel de deuses do plano espiritual onde Ancelmo (Leandro Hassum) vai parar, composto por grandes nomes como Hélio de La Peña, Dani Calabresa, Falcão, Paulinho Serra, Maria Clara Gueiros e Felipe Torres, consegue alavancar a produção, embora flerte com a possibilidade de uma comédia infantilizada, mas que ao mesmo tempo poderia funcionar — como na cena em que Ave Maria faz uma piada e um outro membro do conselho sugere que ela está "cheia de graça". É válido ressaltar que a cena envolvendo um corretor ortográfico de celular também se mostra divertida e acertada.
O limbo habitado por Ancelmo, por outro lado, não recebe tanto destaque quanto poderia, embora o sistema de pontos (possivelmente inspirado em The Good Place) e a burocracia envolvendo os trabalhos demonstrem potencial criativo. Seria interessante entender um pouco mais as particularidades do local e conhecer as pessoas por trás de seu funcionamento. Com essa falta de contextualização, as extensões dos poderes concedidos ao novo morto e o motivo por trás da proibição de incorporar os humanos, por exemplo, acabam não ficando claros — e, no caso da última, a regra parece não ser tão severa assim, já que se opta por perdoar Ancelmo e relevar as possíveis consequências sem muito debate. No último ato, sem ter muito para onde correr, O Amor Dá Trabalho se encerra de maneira previsível, pouco envolvente e com o pouco de coerência de que ainda dispunha.