Sangue sobre sangue
por Bruno CarmeloAlgumas décadas atrás, o abandono do herói virtuoso em prol do “loser” (perdedor) trouxe uma mudança significativa à construção dos novos ícones do cinema independente. De repente, o protagonista não era mais o atleta americano musculoso, que saía com todas as garotas, e sim o adolescente cheio de espinhas, atrapalhado no amor e pouco talentoso nos estudos. De American Pie a Superbad - É Hoje, criou-se o imaginário de que o verdadeiro representante da adolescência é o jovem infantilizado, cheio de hormônios e consumidor de cultura pop. Em pleno 2018, esta figura também aspira à condição de YouTuber, ou “influenciador digital”, podendo ter fãs e criar tendências sem sair do quarto onde mora, na casa de sua mãe. O poder e o status nunca pareceram tão fáceis de alcançar.
Este é o imaginário retratado em Os Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro, filme pensado para dialogar diretamente com o público ultracontemporâneo, empacotando os elementos da moda no que diz respeito a memes e linguagem da Internet. Os protagonistas são adultos fracassados, que agem como adolescentes e têm seu próprio canal no YouTube. Embora haja homens e mulheres no grupo, as figuras femininas são colocadas em segundo plano para os homens assumirem a liderança e resolverem seus conflitos através de frases do tipo “Seu merda!”, “Sua bunda!” e “Sua arrombada!”. Sim, o discurso é machista e infantil, e os criadores possuem plena consciência disso, parodiando a si próprios a todo instante (o que não torna o projeto menos machista e infantil, apenas autocondescendente).
O terço inicial constrói com competência a dinâmica da comédia de terror. É neste momento que se manifesta a loira do banheiro – presenciadas pelas crianças, dentro do colégio – enquanto os exterminadores são chamados não para resolver um caso, e sim para fingirem que resolveram o caso, na intenção de acalmar os estudantes. O movimento inicial contrapõe a verdade e a mentira, a ficção e a realidade, já que os próprios alunos criam suas histórias falsas sobre a figura assustadora. O diretor Fabrício Bittar entrega de uma só vez a lenda e sua corruptela, num procedimento metalinguístico em que se revela ao público as ferramentas por trás da ilusão do terror.
Infelizmente, este caminho é logo abandonado, e o roteiro passa a seguir rumos anárquicos e incompatíveis uns com os outros. Os exterminadores são apresentados por suas funções e características individuais, que de nada servem ao seguimento da trama – os personagens poderiam ser quaisquer jovens adultos fugindo da assombração. O espaço do banheiro, fundamental à lenda, é deixado em segundo plano, já que a loira começa a aparecer por todos os cantos. A loira do banheiro dialoga diretamente com os medos das crianças na escola, no entanto os alunos são abandonados pela história, de modo que a loira interage quase unicamente com os exterminadores dentro do edifício esvaziado. Perde-se a metáfora sobre o medo juvenil de se expor numa posição de fragilidade em local público.
Aliás, a mitologia da loira do banheiro é desprezada pelo roteiro, que privilegia uma forma genérica de força do mal. Inicialmente, ela se apresenta como fantasma preso ao espelho, para depois se tornar uma assombração incorpórea, um demônio capaz de possuir corpos, uma espécie de zumbi e uma entidade com poderes de telecinesia. A vilã se encarrega de qualquer maldade que a história julgar necessária naquela cena específica, num modus operandi incoerente e sem impacto – a cena das bolas envolvendo Antônio Tabet, provavelmente a mais inventiva da trama, seria muito mais potente se a loira não fosse capaz de uma fisicalidade muito mais sanguinolenta, como demonstra em seguida.
O sangue, a propósito, constitui o principal elemento decorativo do filme. No início, a quantidade de sangue parece apenas um exagero, mas quanto mais a história se afasta do realismo, mais os litros de fluidos corpóreos (que incluem urina, esperma, fezes, líquido amniótico) são alçados ao status de um objeto em si. O sangue se torna um figurino, uma máscara para os personagens, irreconhecíveis por baixo de sucessivas camadas destinadas a sujá-los até perderem a identidade. No final, o “japonês ruivo” é vermelho, a senhora idosa é vermelha, o exterminador é vermelho, o jovem de peruca loira e barba é vermelho. O projeto apaga especificidades através do sangue, que une qualquer personagem numa mesma brincadeira viscosa e inconsequente – é divertido perceber que os sobreviventes estão cobertos de sangue da cabeça aos pés, mas não gravemente machucados.
Assim, pela quantidade e intensidade dos confrontos, nada parece real dentro dessa escola: o terror se dilui em nome da comédia e da farsa. Sem surpresa, os elementos típicos do gênero são temperados com uma comicidade adolescente que abraça a escatologia como passagem obrigatória. Mesmo a cena envolvendo um feto soa mais como uma traquinagem do que uma verdadeira subversão do significado dos elementos utilizados. Os Exterminadores do Além Contra a Loira do Banheiro brinca com pedofilia, misoginia, estupro e afins, apenas para criticar a si mesmo na cena seguinte, soando menos incendiário do que tolo, incapaz de demonstrar qualquer opinião efetiva sobre esses temas.
Esteticamente, percebe-se o cuidado em criar cenas grandiosas, efeitos de terror verossímeis e uma maquiagem coerente dentro do exagero que permeia todo o projeto – vide a construção do feto. Uma cena importante envolvendo Caroline (Dani Calabresa) se revela particularmente eficaz (como é raro o cinema de gênero teen abrir o plano e observar um personagem à distância, com câmera fixa!), já a luta entre Túlio (Murilo Couto) e a assombração se apoia numa imagem tão frenética e escura que mais confunde do que revela. Entretanto, é visível o esmero na oposição entre a imagem caseira da câmera de Fred (Léo Lins) e a composição eficaz do encontro dele com a professora Helena (Bárbara Bruno) pelos corredores, quando ambos passam a testemunhar fenômenos estranhos.
No elenco, Dani Calabresa demonstra mais uma vez o bom timing cômico, ainda que seja subaproveitada, e Murilo Couto rouba a cena, talvez por possuir um personagem mais desenvolvido que os demais. Danilo Gentili, também produtor, busca reforçar a identidade de “mentor da juventude para assuntos de desobediência civil”, em continuidade a Como se Tornar o Pior Aluno da Escola. Não por acaso, seu personagem é o único que realmente interage com um aluno. Gentili mantém sua persona, com a mesma voz e os mesmos trejeitos. Para ele, o personagem funciona como oportunidade para reafirmar sua marca. Próximo ao final, o roteiro decide que talvez seja uma boa ideia apresentar a lenda da loira do banheiro, num flashback rápido e violento, mas então será tarde demais. O espectador já terá percebido que a loira é apenas uma desculpa, uma coadjuvante dentro de sua própria história, elaborada sob medida para explorar o humor que supostamente corresponde à mentalidade infantojuvenil em 2018.