Se fizermos o exercício de classificarmos as obras contemporâneas através dos gêneros primários do teatro – semelhante a separação realizada no Globo de Ouro, entre drama e comédia –, é certo que colocaríamos o sul-coreano Parasita no lado das comédias, apesar de todas as suas nuances que o tornam longe de ser algo convencional, seja lá em qual gênero ele se enquadre.
A obra de Bong Joon-ho nos introduz a família Kim e justifica seu título logo na sequência de abertura. Vivendo de forma indigente em uma casa que se assemelha a um porão que, além do pouco espaço e da sujeira e insetos, materializa a metáfora da família viver abaixo da sociedade, já que a casa aparenta estar em um nível inferior à rua em que moram, os membros da família demonstram que se viram como podem, seja ganhando dinheiro dobrando caixas de pizza para uma pizzaria local, seja utilizando qualquer wi-fi aberto que puderem encontrar. A oportunidade, entretanto, bate à porta quando Ki-Woo (Choi Woo-sik), o filho mais velho dos Kim, recebe a visita de um velho amigo (Park Seo-joon) que lhe oferece a chance de ser tutor de inglês para a filha de uma família rica.
O momento em que Ki-Woo chega à casa da elitizada família Park para a entrevista de emprego é ilustrado por um travelling que deixa claro a diferença que existe entre a vida das duas famílias. Enquanto os Kim esgueiram-se para viver em seu pequeno lar – facilmente encaixado no plano inicial –, os Park podem se dispersar por uma enorme casa, construída por um arquiteto renomado, tão grande que o plano médio utilizado por Joon-ho mal captura seu espaço. É também esta diferença de classes que molda a personalidade das duas famílias, pois enquanto que os ricos não precisam ter quaisquer preocupações mundanas e acabam soando demasiadamente ingênuos, os pobres parecem ter nascido com o dom da esperteza, já que não tarda para que toda a família Kim se instalem entre os Park, parasitando entre eles. Já a simetria entre a composição das famílias – pai, mãe, filho, filha – só evidencia mais ainda o distanciamento entre as realidades.
A construção dos núcleos funciona para que a suspensão de descrença do público não seja exigida em níveis extremos: apesar dos planos por vezes serem muito mirabolantes, são críveis devido a soberba dos Park. Por exemplo, se a matriarca da família demonstra certa reverência a figuras e produtos americanos, usar dos EUA para atestar suas mentiras torna-se prática comum – usam até mesmo nomes americanos para soarem mais confiáveis – e conforme a farsa se mantém através destes pequenos detalhes, só é necessário um para acender uma faísca entre ambos, já que trazem à tona certos preconceitos do patriarca Park (Lee Sun-kyun). Entretanto, o texto co-escrito pelo diretor e por Han Jin-won acerta ao não estabelecer nenhum dos personagens como “vilões” propriamente ditos, já que não há pessoas más em cena, apenas comportamentos condenáveis por parte deles – o próprio Sr. Park é tido como um bom homem pelo Sr. Kim (Song Kang-ho), algo que é afirmado mais de uma vez.
E é logo quando a obra parece perder o fôlego por permanecer neste lugar comum e a curiosidade de como Joon-ho pode concluir sua trama de forma coerente surge, que há um plot twist que transforma Parasita como um todo. O filme de comédia dá lugar a outra obra e o diretor pega seu público pela garganta, pois torna-se impossível imaginar quais os desdobramentos de um certo acontecimento. Joon-ho demonstra um preciso controle de câmera ao fazer com que o público, antes tão à vontade, seja preso em planos claustrofóbicos, incômodos e cheios de adrenalina. A partir daí, com o choque entre os núcleos ganhando contornos mais sombrios, o diretor cria planos contrastantes, que explicitam as aflições dos menos afortunados diante das “preocupações” dos Park, algo bem elaborado pela exemplar montagem de Yang Jin-mo, ágil nos momentos certos.
Conforme se aproxima do final, Parasita coloca a luta de classes cada vez mais no centro da trama, trazendo um clímax à altura para o conflito de lados tão extremos. Com isso, a obra de Bong Joon-ho que começara como uma indiscutível comédia migra para outros gêneros, sem abrir mão de ser um entretenimento provocativo, ácido e impactante. E embora tende a explicar-se demais ao final, sua conclusão dolorosa cabe perfeitamente ao discurso da obra.