Andando em círculos
por Bruno CarmeloA primeira cena desta comédia é excelente. Dois homens estão parados no meio do deserto, esperando a chegada de uma carruagem que nunca vem. Em poucos minutos, os diálogos absurdos ditam a interação: a dupla discute a fuga ao oeste, o sonho americano, o fetiche de ver um índio de verdade, a importância da Bíblia – cujo único exemplar visto em cena teve as suas páginas rasgadas e utilizadas como papel higiênico. Hasteada em pleno deserto, uma bandeira americana está rasgada e surrada. Damsel se anuncia como uma corrosiva crítica aos valores da América profunda.
Os momentos de ironia são os melhores do filme. Os quatro personagens masculinos principais – o patético conquistador (Robert Pattinson), o falso padre (David Zellner), o cunhado ciumento (Nathan Zellner) e o índio salvador (Joe Billingiere) – orbitam em torno de uma única “donzela”, Penelope (Mia Wasikowska), que todos acreditam precisar ser salva uns dos outros. Mas ela está muito bem sozinha, obrigada, como repete sempre. A necessidade patética de forjar heróis e construir a virilidade através da posse são questionadas em passagens de bom humor físico e diálogos afiados.
Infelizmente, o ritmo é comprometido pela montagem, insistindo em fazer cada cena durar muito mais do que deveria para obter a comicidade proposta. A reação da imprensa na sala de cinema confirmava esta impressão: a cada nova passagem – a narrativa se articula como uma sucessão de esquetes – os espectadores riam da proposta no início, mas à medida que se ele repetia ou se reexplicava, o humor se esvaía. Na segunda metade, quando o foco se volta para Wasikowska, o resultado também perde potência devido à dificuldade da atriz em explorar o timing dos diálogos e a presença patética de sua personagem – algo que Pattinson, protagonista da primeira metade, compreende melhor. Além disso, o curioso uso de enquadramentos, com personagens sempre no centro da imagem e o fundo desfocado, compromete a exploração dos espaços tão importantes aos gêneros do faroeste, aventura e road movie.
Outra deficiência se encontra na exploração dos estereótipos: as piadas de índios, padres, donzelas em perigo e afins rendem bons frutos no início, mas tornam-se superficiais numa narrativa sem interesse em desenvolvê-los. Conhece-se muito pouco de cada um, a transformação dramática deles é praticamente inexistente, e os objetivos também se tornam vagos. Estas figuras aparecem e somem quando convém à trama, tornando as suas presenças artificiais. Os protagonistas de Damsel estão literalmente e alegoricamente andando em círculos. O filme, infelizmente, os acompanha.
É simbólico que se parta do nada para se chegar a lugar algum, algo que corresponde ao cinismo da premissa. No entanto, os irmãos Zellner, que também se colocam em cena, perdem a oportunidade de aprofundar a crítica anunciada e humanizar os estereótipos utilizados para finalidade cômica. Afinal, por mais que o índio não corresponda à imagem preconceituosa do selvagem, ele permanece uma fantasia, um homem vestido de índio, sem que a sua cultura ou suas especificidades sejam utilizadas pela história. Existe um abismo entre ironizar estereótipos e subvertê-los.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.