A ilusão da escolha
por Kalel Adolfo*A crítica a seguir não contém spoilers de Matrix 4!
Existem dois tipos de franquias no cinema: aquelas que apenas entretêm e geram receita para a indústria, e outras que — além de fazer tudo isso — marcam a cultura e levantam discussões tão profundas que ultrapassam a esfera da sétima arte. Matrix definitivamente está nessa segunda categoria. Portanto, quando foi anunciado que Lana Wachowski iria reviver a saga após quase duas décadas, as expectativas não poderiam ser maiores. A boa notícia? A cineasta fez a espera valer a pena.
Com os retornos de Keanu Reeves — que chegou a pular de um prédio de 150 metros durante as gravações — e Carrie-Anne Moss — que reinventa a Trinity que conhecemos neste quarto capítulo —, Matrix 4 é tudo o que esperamos de uma boa continuação: ela mantém o espírito do original, ao mesmo tempo em que expande o universo narrativo e abre novos questionamentos que provam a riqueza imaginativa sem fim da saga.
Para manter a trama em segredo, explicarei a história de forma muito breve: em Resurrections, Neo está de volta à Matrix, vivendo uma falsa realidade. Ele não tem conhecimento sobre os eventos dos filmes anteriores. Mas claro, não demora para o protagonista ser confrontado com a decisão de rasgar o véu ilusório e descobrir a verdadeira essência de sua rotina.
E é aí que a complexidade da obra começa a tomar forma: o poder de escolha também é uma ilusão nesta sequência. A decisão entre ingerir a pílula vermelha ou azul é apenas um ato simbólico, já que os personagens sabem desde o início que há apenas uma atitude a ser tomada. Essa impotência diante das circunstâncias — queira você combater o sistema ou optar pela alienação — é um dos temas recorrentes do roteiro. Não importa o que você decidir: a partir do momento em que há apenas dois caminhos, a liberdade nunca será integral, já que ambos os percursos delimitam seus próximos passos. Analisando friamente, isso nada mais é do que a vida.
Tal proposta existencialista — e melancólica — é fruto das próprias vivências da diretora: há alguns anos, ela perdeu ambos os pais. Portanto, decidiu desenvolver o roteiro de Matrix 4 como uma forma de processar as emoções do luto, transformando toda a angústia da falta de controle perante à morte em um novo capítulo das trajetórias de Neo e Trinity. Coincidentemente, essa alegoria conversa bastante com os tempos atuais.
O primeiro ato de Matrix 4 opera quase como um reboot. Todos os elementos do primeiro longa da franquia estão presentes, desde o protagonista alienado em relação ao mundo que vive, chegando ao choque provocado pela revelação do sistema. Porém, Wachowski consegue mirar em uma ótima ferramenta para impedir que o projeto vire apenas uma releitura modernizada: a metalinguagem.
As autorreferências da produção são feitas de forma autoconsciente, não pesando na seriedade ou no humor. O equilíbrio é simplesmente impressionante. A ideia de assistir um filme de Matrix dentro da Matrix é deliciosamente sádica, já que Neo mergulha em uma espiral de dúvidas e loucura enquanto a verdade é frequentemente esfregada em sua cara sem que ele perceba. Não ficou claro? Imagine jogar The Sims estando dentro de uma simulação. É sobre isso.
Se Matrix foi um marco narrativo e visual no final dos anos noventa, este quarto capítulo consegue continuar o legado revolucionário da franquia com facilidade. Começando pela Cidade das Máquinas: os fãs ficarão emocionados ao ver o avanço da tecnologia proporcionando ambientações ainda mais complexas e realistas.
As sequências de ação são explosivas e familiares: ao mesmo tempo em que Wachowski aposta em batalhas mais viscerais e violentas do que vimos nos filmes anteriores, existem ótimos acenos ao estilo de combate fantasioso e sci-fi que marcou a saga. Este é o maior triunfo de Resurrections: trazer algo original sem se esquecer de sua origem.
Mesmo sem interpretar Neo e Trinity há quase vinte anos, Keanu Reeves e Carrie-Anne Moss conseguem reviver a química destes personagens em um piscar de olhos. Até quando não se lembram um do outro, é evidente para o espectador que esses dois compartilham uma conexão especial.
Além disso, os atores também conseguem trazer nuances de vulnerabilidade para estes indivíduos. Neo e Trinity são poderosíssimos, mas nesta história, há espaço para que eles tenham inseguranças, medos e dores como qualquer outro ser humano.
E por mais que fiquemos tristes pela ausência de Laurence Fishburne no icônico papel de Morpheus, Yahya Abdul-Mateen II consegue dar conta do recado, sendo um dos destaques do elenco com a sua presença que, apesar de enigmática, consegue transbordar carisma.
Sati (Priyanka Chopra Jonas) e Bugs (Jessica Henwick) são excelentes novos personagens que trazem um ar dinâmico, jovem e representativo para a história. Mais um ponto que comprova o quanto o novo arco de Matrix soa fresco e acessível para as últimas gerações que queiram se aventurar neste mundo de super computadores e simulações da realidade pela primeira vez.
Um dos poucos pontos baixos desta continuação é o ritmo arrastado, que às vezes quebra a empolgação construída com tanto cuidado pela diretora. Após tanto tempo esperando, queremos ver a ação comendo solta. Porém, a preocupação excessiva em transmitir as filosofias da saga acabam ofuscando um de seus maiores apelos: a adrenalina futurista.
Algumas adições no elenco como Neil Patrick Harris (How I Met Your Mother) e Jonathan Groff (Hamilton) também não são tão bem-aproveitadas. O roteiro peca ao fazer com que esses astros entreguem performances vilanescas caricatas e previsíveis. Esse é o único ponto em que a saga se mantém antiquada.
Porém, salvo pequenos detalhes, Matrix Resurrections é o exemplo ideal de como expandir uma franquia. Não apenas Lana Wachowski se preocupa em traduzir os visuais e conceitos do clássico de 1999 para os dias atuais, como ela atualiza alguns personagens tidos como imbatíveis. O resultado é uma história que soa familiar, original e incontestavelmente sensível.