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    Foro Íntimo
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Foro Íntimo

    Ambiguidade seletiva

    por Sarah Lyra

    Foro Íntimo é um filme inquietante, não só em conteúdo, mas principalmente em seu processo de construção criativa. Parece ter uma disposição quase avassaladora de ser transgressor, como pode ser constatado pelo seu cuidado estético, por não se adequar a uma duração comercial esperada (o filme dura pouco mais de uma hora) e por sua alternância de razão de aspecto nas cenas de abertura e encerramento do longa — note como as duas palavras do título se movem das extremidades até o centro da imagem, enquanto o tamanho do quadro é reajustado, e como, na cena final, o rosto do protagonista é mostrado em um quadrado, como se ele estivesse preso dentro de uma caixa.

    Na trama conduzida pelo diretor e roteirista Ricardo Mehedff, acompanhamos um dia na rotina do juiz Ferreira (Gustavo Werneck) confinado ao fórum, seu local de trabalho, e cercado constantemente por um esquema de segurança que envolve homens fortemente armados. Sua família foi levada para Buenos Aires também por questões de segurança, já que o juiz é um alvo fácil por estar à frente de um polêmico caso judicial contra um senador brasileiro. Assim, o filme se propõe a abordar os impactos psicológicos desse aprisionamento em um homem que perdeu sua privacidade, o controle sobre seus casos — os seguranças interferem diretamente em que casos serão julgados em um dia de trabalho, por conta das frequentes ameaças contra a vida do juiz —, está afastado da esposa e filhos e não tem qualquer contato com o mundo exterior.

    Como os personagens secundários estão em cena para compor o ambiente e desempenhar funções específicas na rotina do protagonista, mais do que para desenvolver arcos próprios, Foro Íntimo foca unicamente na figura de Ferreira. Não há, aqui — pelo menos, não em um primeiro momento —, a intenção de deliberar sobre as ações do personagem ou seu caráter. Da maneira que Mehedff nos apresenta à vulnerabilidade e intimidade do juiz, torna-se irrelevante saber se o personagem está certo ou errado, se é uma pessoa boa e admirável, ou se existe ética em sua abordagem profissional. Não que esses questionamentos não sejam importantes, mas, ao nos dar acesso irrestrito aos seus medos e inseguranças, é inevitável não criar uma conexão e empatia mesmo diante da ausência de mais informações. Essa conexão é estabelecida, essencialmente, pela identificação com o personagem.

    Ao nos colocar a favor do protagonista desde o primeiro instante, Mehedff adquire a liberdade para compor de forma mais criativa e autoral. O diretor não está interessando em acontecimentos e ações específicas para nortear a trama, o objetivo é ilustrar a solidão e o sentimento de impotência gerados em Ferreira. Para isso, ele também nos dá acesso aos sonhos e devaneios do personagem. Os pesadelos recorrentes em que ele leva um tiro na cabeça, assim como a cena em que todos à sua volta aparentam um estado de suspensão, funcionam como uma espécie de delírio da mente do protagonista, cujo nível de exaustão se torna cada vez mais palpável. Seja nas imagens de formigas “duelando” enquanto uma maçaneta é acionada violentamente (caracterizando a crescente paranoia sentida por Ferreira), na frieza do ambiente judiciário, ou na justaposição das imagens de um circuito interno, somos inevitavelmente levados a torcer por algum tipo de respiro para o personagem, para que ele se veja livre daquela situação, de alguma forma.

    Por conta disso, é um pouco decepcionante ver que, nos instantes finais, o roteiro insere um apresentador de telejornal explicando a situação que culminou no isolamento de Ferreira. Embora nossa curiosidade seja saciada, o filme abre, pela primeira vez, a possibilidade de nos distanciarmos da perspectiva do protagonista. O que talvez fosse válido se a intenção fosse criar uma quebra na narrativa ou na visão idealizada que construímos do protagonista. Mesmo sem saber nada sobre ele, nossa tendência, enquanto espectador, é partir do pressuposto de que ele é digno de nosso afeto e compaixão. O que Mehedff parece sugerir na cena da televisão é que estávamos certos o tempo todo sobre Ferreira, mesmo inconscientemente, e que não existe a possibilidade de um juiz disposto a combater a corrupção estar no lado errado da história. Uma visão um tanto problemática, principalmente agora que a autoridade dos juízes brasileiros tem sido mais questionada do que nunca. A ambiguidade criada pelo roteiro até então funcionava melhor na caracterização do personagem e da trama.

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