Além da compreensão
por Bruno CarmeloUm aprendizado importante quando nos deparamos com uma pintura abstrata diz respeito à adequação dos paradigmas: não adianta interpretar borrões ou formas livres como se leria a arte figurativa. Os conceitos e as sensações provocadas se tornam mais importantes do que o domínio da técnica clássica, e a relação da forma com um referencial no mundo (um objeto, uma pessoa) se torna dispensável. Tentar “entender” uma pintura abstrata, no sentido convencional do termo, resultaria em algo tão inútil ou falho quanto buscar formas de animais nas nuvens: seria embutir um significado onde ele não existe.
Essa digressão ajuda a analisar o filme grego Thread, dirigido por Alexander Voulgaris, artista de música eletrônica mais conhecido pelo pseudônimo The Boy. O filme possui algumas formas conhecidas, ele tem uma atriz principal e uma sugestão de linearidade narrativa - uma militante é perseguida pelo governo, tendo que abrir mão dos cuidados ao filho recém-nascido. No entanto, buscar mais significados além disso seria uma falácia. Este não é um “filme abstrato”, porque a essência fotográfica do cinema impede a completa abstração, mas ele busca sensações análogas à dos borrões nos quadros contemporâneos: ao invés de conduzir o espectador através de um sentido, ele dispersa nossas possibilidades de entendimento.
Assim, a estranheza e o distanciamento se tornam portas de entrada para uma viagem psicodélica de 94 minutos. Voulgaris utiliza projeções, nudez e sangue, iluminação artificial e câmera lenta, efeitos pixelizados e profundidade de campo limitada. Para retratar um grupo de guerrilheiros denominados O Rosto, revela apenas um único rosto durante todo o filme: o de Sofia Kokkali, que interpreta ao mesmo tempo a jovem politizada Niki e seu filho Lefteris, quando adolescente. Os demais personagens são sugeridos por sons e pedaços de corpos entrando no enquadramento. A montagem trabalha uma temporalidade fluida e onírica, aproximando o resultado de um longo pesadelo.
Thread poderia ser lido como uma metáfora da ditadura na Grécia, ou ainda como uma fábula psicanalítica, pelo fato de o filho e a mãe serem interpretados pela mesma atriz. O título, “fio”, diz respeito ao cordão umbilical que os protagonistas precisam cortar uns com os outros, com suas raízes e com suas crenças durante um governo de exceção. Todas essas leituras fazem sentido, e outras dezenas seriam igualmente possíveis. Mas elas parecem estéreis diante do verdadeiro interesse do projeto em fornecer uma jornada plástica. Este é um veículo de comunicação com os sentidos imediatos - medo, desejo, repulsa, asco - ao invés da razão. Qualquer leitura temática ou discursiva soaria como um despropósito - como buscar formas de animais nas nuvens.
Curiosamente, a fragmentação das formas e do entendimento resulta num projeto em que os momentos mais potentes são deglutidos por tantos outros que os anulam, ao invés de os completarem. Este é um filme autofágico, cuja radicalidade se repete e se enfraquece: quando tudo é choque, nada mais o é. Cenas de tortura e estupro podem ser muito incômodas durante determinado tempo, mas quando a projeção se limita a reproduzir provocações semelhantes, o resultado é a anestesia do espectador. Talvez a indiferença diante da violência seja o próprio discurso do filme. Talvez ele não articule discurso algum e constitua uma experiência autocentrada e autocondescendente. A arte pela arte.
Filme visto no IV Festival Internacional Lume de Cinema, em março de 2017.