Santa ou prostituta
por Bruno CarmeloAngelica (Alba Rohrwacher) é definida desde a cena inicial pelo sexo: ela é flagrada pela pequena Vittoria (Sara Casu) numa feira agrícola do vilarejo, fazendo sexo com um desconhecido. Os cabelos estão bagunçados, o vestido também. Tina (Valeria Golino), por sua vez, é definida pela maternidade: a gentil mãe procura a sua filha, vê se ela precisa de algo para comer, arruma a garota para ir embora. Esta oposição frontal entre as duas mulheres dita toda a narrativa de Daughter of Mine.
A diretora Laura Bispuri faz questão de que o contraste seja evidente. Angelica é loira, desbocada, decadente, em outras palavras, a típica “puta do vilarejo”, que sai com qualquer um em troca de algumas moedas. Os homens às vezes utilizam seus serviços por piedade, ou pagam bebidas como se quisessem calar uma criança insistente. Tina é morena, com as roupas discretas, gestos mínimos e aparência de “mater dolorosa”. Ela protege a sua filha ao máximo, ostenta uma expressão permanente de preocupação no rosto, como se carregasse o peso do mundo nas costas. Não estamos diante de duas personagens quaisquer, e sim de dois arquétipos muito precisos da figura feminina na sociedade patriarcal.
Embora não demonize uma nem idealize a outra, o roteiro faz questão de mostrar ambas como excludentes: você será a santa ou a prostituta, é preciso escolher. Ou faz sexo com todos, a exemplo de Angelica, ou não faz sexo com ninguém, a exemplo de Tina, que dorme em quarto separado do marido. Esta escolha é imputada à pequena Vittoria, que logo descobre a verdade sobre a sua criação: embora tenha sido cuidada a vida inteira pela mãe tradicional, nasceu do ventre da prostituta. Felizmente, partindo de uma oposição óbvia, a narrativa permite que esta descoberta seja feita de modo progressivo, evitando o melodrama.
Como já havia mostrado em Virgem Juramentada, Bispuri é capaz de construir boas narrativas realistas, com a câmera na mão colada aos personagens, movendo-se entre cenários paradisíacos. A imagem possui uma textura granulada, suja, as cores são saturadas, as peles estão sempre transpirando, e os cabelos, bagunçados. Rohrwacher, uma das atrizes mais talentosas de sua geração, mostra-se bastante confortável nos gestos grosseiros de sua personagem, embora o roteiro sublinhe demais o não pertencimento da mulher naquele lugar. O realismo se encontra nas imagens, porém não na narrativa: esta é uma fábula de aparência naturalista.
Daughter of Mine transparece dificuldade em avançar a sua narrativa. Durante metade da história, a garotinha alterna entre uma cena com a mãe biológica – sempre divertida, imprevisível, selvagem – e outra com a mãe adotiva – segura, confortável, previsível. A eventual fusão, ou conciliação entre ambas é inevitável, porém Bispuri segura o desenlace deste único conflito o filme inteiro, acreditando estar prestes a entregar uma grande surpresa. O desfecho, quando finalmente ocorre, era antecipado há tempos.
O projeto se conclui como um cinema de arte hábil na arte de explorar espaços, retratar corpos e interações. No entanto, seria muito mais prudente posicionar o ponto de vista sempre junto da garota, ao invés das duas mães. Afinal, o conflito verdadeiro encontra-se com a menina, encarregada de escolher entre ambas figuras femininas e descobrir com a qual se identifica. As adultas não têm a possibilidade de transformação dentro de um roteiro que definiu, desde o princípio, o papel social de cada uma. Apesar de se afastar frequentemente do olhar infantil, o filme se torna mais potente sempre que se concentra na bruta descoberta do mundo adulto por Vittoria.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.