Radioactive (Marjane Satrapi, 2019)
Embora eu seja um entusiasta do cinema, o texto a seguir foi escrito a partir do meu “lugar de fala” como historiador que atualmente pesquisa a história dos radioisótopos na biologia e tem algum conhecimento sobre a história da radioatividade e da energia nuclear. A intenção aqui também não é fazer uma crítica cinematográfica. Dito isso, vamos ao filme. Bom, primeiramente é importante ressaltar que é muito bom ver um filme sobre a Marie Curie produzido nos dias atuais. Um filme estadunidense sobre ela foi lançado em 1943. “Madame Curie”, dirigido por Mervyn LeRoy, buscou retratar a biografia da cientista, e recebeu, na época, várias indicações ao Oscar (Existe também um filme de 2016 intitulado Marie Curie, que ainda não tive o prazer de assistir). Mas e o filme de Marjane Satrapi, lançado pela primeira vez em 2019 e liberado ontem (15/04/2021) no Netflix?
Bom, o filme possui uma ótima fotografia e direção de arte, com cenas, enquadramentos, cores e objetos bem bonitos. Entretanto, gostaria de falar sobre alguns problemas do roteiro. Primeiro, por não contextualizar muito bem o cenário no qual Marie Curie faria suas descobertas, qual seja, uma comunidade ainda impactada pela recém descoberta dos raios X pelo físico alemão Wilhelm Conrad Röntgen, em 1895, e pelos trabalhos seguintes de Henri Becquerel, em 1896, o filme pode confundir seu telespectador a respeito de qual realmente foi o feito de Curie. Até porque, posteriormente, se fala algumas vezes em raios X, os associando diretamente à cientista franco-polonesa. Em segundo lugar, o filme não menciona que Henri Becquerel teria também ganhado o prêmio Nobel de física em 1903, junto com o casal Curie. O próprio fato de Marie Curie ter ganhado esse prêmio, sendo a primeira mulher a consegui-lo, não é muito explorado. Um terceiro problema, ou aspecto no mínimo estranho do filme, são as cenas que por vezes aparecem, representando outros contextos históricos de aplicação da "descoberta de Curie", como se houvesse uma relação direta entre esses eventos. É confuso quando, simplesmente do nada, aparece uma cena ambientada numa clínica em Cleveland, em 1957, na qual um menino é exposto a um tratamento de medicina nuclear. Cenas mostrando as explosões em Hiroshima e Nagasaki, e o acidente nuclear de Chernobyl também aparecem depois. Com isso, o filme volta em eventos relacionados ao tema da radiação e da energia nuclear já muito conhecidos, não acrescentando nada a essas histórias, e fazendo uma correlação com a vida de Marie Curie que, ao meu ver, não faz sentido. Pela linguagem cinematográfica, é como se Marie Curie, no seu leito de morte, se arrependesse de ter descoberto a radioatividade, baseado em suas “lembranças” ou na sua presença fantasmagórica nesses outros eventos. Parece que entre os feitos de Marie Curie e esses outros eventos posteriores, não aconteceu nada. A falta de exploração do contexto científico e social em que viveu Curie também, mais uma vez, pode levar a uma visão heróica da personagem principal. É fato que Marie Curie é uma das principais personagens da história da radioatividade e da história das ciências do século XX, mas não é a única. É claro que nenhum filme tem a obrigação de ser verossímil, fiel à realidade. E não é esse o ponto da minha reflexão. Mas, dado que o filme de Satrapi tem a clara intenção de retratar a biografia de Curie, não há como não se incomodar com algumas dessas escolhas do roteiro. A história da radioatividade é um dos episódios mais bem documentados da história das ciências, ainda que não haja grandes trabalhos de fôlego na historiografia sobre o tema. Omitir um Nobel de Becquerel, não explorar o fato de Marie Curie ter ganhado esse mesmo prêmio em 1903 e 1911, não contextualizar um mundo que havia recentemente conhecido as imagens produzidas pelos raios X, e, sobretudo, relacionar de uma forma tão esteriotipada a vida de Curie com eventos emblemáticos na história da energia nuclear, são, na minha opinão, alguns dos pontos mais problemáticos do filme. Sem falar que, Marjane Satrapi, como franco-iraniana, poderia muito bem ter feito um filme em língua francesa, talvez usando o próprio polonês nas cenas da infãncia de Curie. Por que sempre o inglês?
Jorge Tibilletti de Lara
Historiador das Ciências, doutorando (Fiocruz)