A moral da adoção
por Bruno CarmeloDurante o terço inicial deste drama, o espectador é mantido às escuras a respeito de algumas informações essenciais: quem é a mulher misteriosa, dirigindo centenas de quilômetros na chuva até um hospital? Qual é a relação dela com a mulher parindo? Por que o marido se recusa a ir? Por que todos agem como se estivessem sendo vigiados? O diretor Diego Lerman se dedica à construção do suspense pela revelação progressiva de cada um desses elementos. Aos poucos, o quebra-cabeça se completa diante do espectador.
Pela condução da narrativa, o espectador se posiciona ao lado de Malena (Bárbara Lennie), médica que aparece em praticamente todas as imagens com a câmera colada a seu rosto. É ela quem espera o bebê para adoção, é ela quem sofre com a chantagem para a entrega da criança. É justo ter que pagar uma quantia imensa de dinheiro para ter o filho prometido? Isso configura crime? Se a mãe biológica enfrenta graves dificuldades financeiras, e Malena tem condições de ajudar, qual é o problema em fazê-lo? A primeira parte apresenta um amplo dilema diante do qual a protagonista começa a tomar atitudes extremas e controversas. Até que ponto torcemos por ela?
No que diz respeito à discussão moral, Uma Espécie de Família constitui um projeto sólido, capaz de compreender diversos pontos de vista sem apresentar uma verdade única. O roteiro, inclusive, encontra espaço para destacar a luta de classes envolvida na disputa pelo bebê. Lerman evita argumentos religiosos, algo particularmente interessante pelo fato de a coprodução envolver países majoritariamente católicos como a Argentina e o Brasil. Malena representa a classe média alta bem-intencionada, porém alienada, enquanto Marcela (Yanina Ávila, excelente) simboliza todas as mulheres exploradas pela baixa situação socioeconômica. Esta última, aliás, rouba a cena sempre que aparece. Talvez fosse ela a personagem mais interessante da história.
Alguns pontos decepcionam. Lennie, atriz muito intensa no simbólico A Garota de Fogo (2014), entrega uma composição embrutecida cujas nuances só aparecem em momento de desespero. Lerman confia tanto nas expressões da atriz que abusa dos close-ups, mesmo quando o espaço ao redor seria importante para representar a solidão de Malena e sua posição de estrangeira na cidade. Apesar de competente, a construção imagética se limita a ações, deslocamentos. As pouquíssimas simbologias, quando aparecem, são um tanto pesadas – vide a nuvem de gafanhotos, na intensidade de uma praga bíblica. O realismo não encontra muito espaço para a poesia, algo que reforça a verossimilhança, mas perde em intensidade emocional.
Rumo à conclusão, Uma Espécie de Família ameaça sair dos trilhos. A narrativa inclui uma série de reviravoltas abruptas, pouco críveis em relação à psicologia da personagem – Malena é ingênua demais quanto à legislação e a seu poderio econômico – e ao funcionamento da máfia da adoção. Subitamente, o projeto envereda pela ação e pelo melodrama, romantizando o instinto materno e a possível redenção da protagonista. O aspecto humano e social se desenvolve de maneira satisfatória, porém a transformação de Malena em mãe-coragem, disposta a tudo, envereda por clichês de gênero que diminuem a força do conjunto.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.