O rosto da mulher que sofre
por Bruno CarmeloO imaginário da guerra sempre foi tipicamente masculino, não apenas pela presença majoritária de homens, mas pela reprodução de códigos da virilidade simbolizados pela dominação e violência. Historicamente, as mulheres estão presentes neste contexto, mas Les Filles du Soleil não deseja falar do trabalho de enfermeiras ou colaboradoras, e sim de um batalhão feminino que luta pela liberdade curda no Iraque, pegando em armas contra os grupos que sequestraram, estupraram e venderam mais de sete mil mulheres no país.
A diretora Eva Husson busca o contato com o público médio, e para isso utiliza todos os códigos do cinema hollywoodiano de guerra, incluindo grandes planos aéreos, trilha sonora grandiloquente e ininterrupta, câmeras lentas para prolongar a duração de um tiro e, principalmente, os close-ups. O uso abusivo das imagens de rostos durante momentos de sofrimento costuma taxado de explorador, além de excessivamente melodramático (a comparação com telenovelas é frequente), mas Husson não se incomoda ao fechar o enquadramento nas faces que gritam contra o estupro das irmãs ou cantam um libelo de esperança. A cineasta deseja sublinhar a dificuldade, caso alguém ainda não tenha entendido o calvário das personagens.
Esteticamente, o projeto se revela competente, ainda que pouco sofisticado. A narrativa se divide entre o tempo presente e os flashbacks, nos quais apresenta as provações enfrentadas pela soldada Bahar (Golshifteh Farahani), compartilhadas com a jornalista francesa Mathilde (Emmanuelle Bercot). Mesmo que as mulheres passem à ação, incomoda o modo como o roteiro prefere enxergá-las, acima de tudo, como mães: o principal motivo para o combate diz respeito a seus filhos desaparecidos, mortos ou distantes. Bahar procura o filho na escola, outra combatente está prestes a dar à luz durante uma fuga. Trata-se de cenas exageradas, sobretudo por não desenvolverem nenhuma outra personagem além de Bahar e Mathilde. O resto do batalhão permanece anônimo.
Apesar destas deficiências, o projeto se sustenta na bela atuação de suas atrizes principais. Farahani e Bercot são expressivas, capazes de grande variação emocional e equilíbrio de tons: durante as cenas catárticas, conseguem evitar a saturação de gestos. Mesmo as frases de efeito de Bahar e a leitura solene da reportagem de Mathilde são devidamente amenizadas pelo tom cru das atrizes. A interação entre ambas se revela verossímil pelo uso da língua e por minúsculos indícios de aproximação – numa noite, por exemplo, o ruído do possível inimigo desperta apenas as duas protagonistas. O roteiro trabalha com a noção de destino, uma dupla feita para se encontrar e se ajudar.
As Filhas do Sol (em tradução literal) se conclui como uma aventura de sobrevivência voluntariamente apoiada na previsibilidade. Não espere descobrir nenhuma informação específica sobre o conflito curdo, sobre as origens sociais, religiosas e políticas daquela disputa. Os tradicionais letreiros de introdução e encerramento fornecem a mínima informação necessária. Husson trabalha com conceitos amplos de guerra e solidariedade feminina em meio às adversidades. Bahar, Mathilde e as outras personagens não são retratadas em suas habilidades particulares de soldada, estrategistas nem fotógrafas. Elas são resumidas à condição de mulher, num sofrimento que parte de um núcleo específico e se pretende universal, passível de identificação com todas as espectadoras dentro da sala de cinema.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.