Humanizando o excepcional
por Barbara DemerovÀ época do lançamento de Corpo Fechado, M. Night Shyamalan foi aconselhado a não divulgar seu filme como uma história de super-herói. Hoje, o desfecho de sua trilogia conversa bastante com o atual cenário cinematográfico, repleto de diversos poderes e... heróis. Curiosamente, o pontapé inicial do universo particular que criou há quase duas décadas pode servir como um respiro em meio a tantos filmes baseados em quadrinhos. Shyamalan conseguiu uma proeza admirável por vias tortas: se ele retornou ao terror em Fragmentado, a principal façanha de Vidro é o diretor conseguir conversar com o público que consome tramas que visam o extraordinário – ao mesmo tempo em que subverte seu próprio modo de contar histórias por se concentrar nos conflitos internos dos protagonistas. Ainda assim, ele não foge da mesma abordagem vista no filme de 2000, que é frágil, trivial e, sobretudo, humana.
De início, Vidro pode ser resumido como o filme que une Corpo Fechado com Fragmentado, mas há muito mais por trás de tal ideia. A condução dessas três histórias interligadas faz mais sentido do que se tudo estivesse presente apenas num filme, como era o plano inicial do cineasta. Juntas, elas possuem uma coerência ainda mais surpreendente por mesclarem diferentes gêneros: drama, suspense e terror – além da inovação vista no terceiro capítulo: um thriller super-heroico que, se analisado atentamente, incorpora todas as categorias citadas. Temos o suspense que paira no olhar de Mr. Glass (Samuel L. Jackson), o drama contido nas preocupações de David Dunn (Bruce Willis), assim como o terror (agora também interno) de Kevin Wendell Crumb (James McAvoy). Por unir os destaques dentro da construção dessa saga, é inegável afirmar que estamos diante do maior desafio da carreira de Shyamalan.
Passado semanas após os eventos de Fragmentado e 15 anos após Corpo Fechado, Vidro tem basicamente apenas um local que move a trama: o hospital psiquiátrico da Filadélfia onde o trio é internado. David e Kevin (junto de suas 24 personalidades) entram no local ao mesmo tempo, mas Glass está ali há mais de uma década. O maior foco de Shyamalan é mostrar detalhadamente a rotina dos protagonistas, não sem antes situar o espectador com a atmosfera fora do local – especialmente a rotina de David como o herói encapuzado, trabalhando em conjunto com o filho Joseph (Spencer Treat). Após a internação, boa parte de Vidro se concentra na execução das particularidades técnicas do diretor (como nos enquadramentos diferenciados) e na construção do suspense via diálogos com a doutora Ellie Staple (Sarah Paulson). A pesquisa da médica tem como objetivo provar que nenhum deles possui poder algum, seja físico ou mental; e cabe ao trio continuar acreditando em si ou ouvirem os fatos que lhe são apresentados com tanto afinco.
Consequentemente, a pesquisa de Staple ressoa também no espectador, que pode (ou não) duvidar dos feitos do trio na medida em que a personagem dá suas explicações. O ambiente tenso e desequilibrado começa a aparecer diante dessas dúvidas, mas o caminho até o clímax soa vagaroso. Enquanto a trama principal vai sendo costurada com a união gradativa de Glass, Kevin e David, Shyamalan sabe que o mais interessante é justamente a força do trio. McAvoy novamente rouba a cena com suas múltiplas atuações – muito por conta da direção, que lhe dá toda a liberdade e evita cortar as passagens de uma personalidade a outra, enquanto Willis e Jackson brilham com certo equilíbrio, ainda mais afetados pelo peso da ligação que possuem. Porém, sendo este o filme de Glass, sua presença é uma crescente, começando silenciosa e sobretudo no olhar. O personagem de Jackson atua como um roteirista que vai saindo das sombras para, enfim, trabalhar em sua grande e esperada obra.
Ao mesmo tempo que tem como questionamento a crença e a importância de possui-la ou não, Vidro representa a forma de Shyamalan integrar o universo heroico ao seu modo. Sem precisar se basear em roteiros de HQ's, ele alcança o topo de uma criação feita exclusivamente para o audiovisual de modo original, mantendo-se na própria essência e utilizando-a como impulso. Suas escolhas narrativas condizem com a proposta de humanizar o incomum e sair da curva de 'filmes de herói' – especialmente no clímax, que une diferentes tons e personagens (como Casey Cooke, Joseph e a mãe de Mr. Glass) a fim de fechar uma história ligada por fatalidades e atos grandiosos, ainda que limitados aos olhos da sociedade.
Dito tudo isso, a melhor parte deste filme ser um grande desafio é que o diretor não parece preso ao passado e nem ao peso do que concebeu. Ele se encontra bastante confortável ao inserir sua identidade em cada plano e cena, que são caprichadamente desiguais. Enquadramentos tortos, movimentos rápidos que vão de um personagem a outro, planos em primeira pessoa e também a câmera na mão podem parecer muitas escolhas de filmagem em um só longa, mas aqui são bem pensadas para "conversarem" com cada cena. A paleta de cores, que vai do roxo ao azul e do rosa ao amarelo, também ganha bastante destaque e serve como um breve aceno ao mundo dos quadrinhos.
Há certa ironia de Shyamalan quando ele ameaça ir por um caminho que visa o espetáculo e, no último segundo, opta por outro rumo menos óbvio. Ele tem a consciência de que, apesar de hoje estar livre para se encaixar no gênero dominado por produções da Marvel e da DC, a identidade que tanto investiu nos últimos anos ultrapassa máscaras e capas.
Vidro é o encontro de Shyamalan com ele mesmo da forma mais sincera e direta com o que estabelece em seus filmes: histórias de pessoas extraordinárias e comuns. Olhando para sua carreira como um todo, este é um filme que define a mente de quem está por trás das câmeras.