Mamãe não canta mais
por Taiani MendesPrece para os mortos que celebra o reencontro com a vida, Réquiem Para Sra. J. acompanha os passos finais de uma senhora entristecida por ter perdido o marido, o emprego e a tranquilidade dentro de casa. Sem razão de existir, ela quer morrer e descobre que abrir mão da existência não é tão simples quanto o imaginado. Iniciativa ela tem, no entanto faltam os materiais, o local apropriado e a segurança de que tudo ficará bem com os familiares.
De Bojan Vuletic, o filme é como a árdua aventura de uma guerreira desolada contra a superburocracia. Ao invés de milhões de desconhecidos, ela pretende salvar a própria alma. Apesar do propósito individualista e até melancólico – estamos falando de suicídio, afinal –, seu inimigo é universal, o que favorece o imediato engajamento do espectador.
O reconhecimento é o segredo que torna o longa-metragem tão cativante e, ainda que alguém não concorde com sua decisão irreversível, é difícil não compreendê-la após testemunhar a personagem se estrepando cena após cena. Ainda melhor é que o diretor não abre mão do formalismo para comover. Pelo contrário. As composições rígidas, os planos repetidos e sem movimento, os posicionamentos imutáveis, os dias iguais e os espaços angustiantes só potencializam a decisão de J. Outro acerto do cineasta é pontuar o drama com passagens discretamente bem-humoradas (algumas tornadas cômicas por serem em excesso trágicas) e ousar investir igualmente na graça mais escrachada, para todos - apesar do tema incomum -, como as piadas do letrista que propõe “olho no olho eterno” na lápide.
A excelente interpretação de Mirjana Karanovic como a personagem principal no início caracteriza-se por ser enigmática, pois é na interação com os outros que a senhora vai se revelando. A isolada sogra “peso morto”, as filhas histéricas e incompreensíveis, o genro esforçado, os contatos que pouco ajudam... A cada “Estou bem. Por quê?” que ela entrega dissimulada, sem o menor esforço de disfarçar a expressão esgotada, o público dá um passo na direção de seu coração empedernido.
Na longa fila à espera de médico, no prédio abandonado em que deu expediente por décadas ou entre burocratas cobertos pela poeira de arquivos perdidos, J parece estar melhor do que os demais, praticamente zumbis, e paira a dúvida se seu brilho é por ter um propósito bem definido ou se aproximar a cada minuto do agendado fim de todo o sofrimento. É nos Balcãs, mas poderia ser no Brasil – a perda do emprego em idade avançada foi tema no igualmente tocante Pela Janela –, e o tom fabular explorado com destreza por Bojan no uso do carro fortalece ainda mais a anteriormente comentada identificação. A epifania final talvez vá demasiado longe, mas o martelo então já foi batido: faria falta a Sra. J.