Uma vida sem heroísmo
por Bruno Carmelo“Por que você quer entrar no exército?”. A pergunta é feita a Juan José González em sua entrevista de admissão. Ele não sabe muito bem o que responder: “Por causa do emprego”, “para deixar a minha mãe feliz”... Apesar da indefinição, ou talvez por causa dela, é aceito. Aos poucos, o jovem descobre uma vida muito distante do imaginário coletivo da função militar. Nada de guerras, brigas, violência, perigo: a rotina de Juan José consiste numa lista infinita de tarefas domésticas do quartel. Ele aprende a fazer saudações, arrumar a cama de três maneiras diferentes, responder aos superiores com interjeições precisas.
Um dos elementos mais interessantes do projeto argentino é o contraste entre a glória do exército e o tédio do protagonista. Durante meses, os soldados se limitam a atividades mais ou menos úteis, tendo como motivação “a honra das batalhas passadas”. Quando o novo recruta é designado para tocar tambor em apresentações, escuta de um superior que sua função deve ser inspiradora, digna de todo o sangue e suor derramado por colegas de gerações passadas. Ora, os soldados contemporâneos podem ter dificuldade de tomarem para si o orgulho de atos tão alheios a suas realidades.
O diretor Manuel Abramovich constrói sua obra, descrita oficialmente como documentário, nos moldes da ficção. O protagonista segue uma jornada linear (a admissão, o aprendizado, o treinamento musical, as férias com a família), é situado pelo diretor em pontos precisos da imagem, com fotografia cuidadosa demais para transmitir a impressão de captura do real. O enquadramento se cola o tempo inteiro no rosto do rapaz, ignorando os rostos ao redor, talvez por escolha pessoal ou por restrição imposta à equipe de filmagem. De qualquer modo, estamos no terreno da construção: algumas cenas parecem encenadas, ou ao menos reproduzidas, para a câmera do cineasta. Entre realidade e ficção, talvez a rotina previsível tenha permitido a Abramovich ter um controle maior do resultado.
Tamanha rigidez do diretor e do próprio exército resulta na impressão de artificialidade: as pessoas têm seus corpos e atitudes moldados por uma sucessão de regras cômicas. Em nenhum momento o soldado questiona os motivos de ter três maneiras diferentes para arrumar a cama, de acordo com os dias da semana. O mesmo vale para todos os outros itens do código de conduta militar. O cineasta cria regras absurdas para si mesmo, forçando-se a retratar o conjunto de soldados com um grande espaço livre no enquadramento, numa premissa que se repete mesmo quando não parece adequada ao objeto filmado. O mecanismo despropositado do exército encontra um equivalente estético.
Soldado diverte pelo humor emanado da repetição. No entanto, a montagem se perde quando sugere uma narrativa linear: o filme indica um problema de saúde para Juan José, apenas para abandonar essa pista. O projeto efetua uma boa constatação, tece uma crítica branda, porém não sabe como desenvolver sua premissa inicial. O que as imagens têm a dizer sobre o exército, elas o fazem nos primeiros trinta minutos, para depois se divertirem no pastiche de si próprias, na repetição (cinematográfica) das repetições (da rotina do exército).
Filme visto no 6º Olhar de Cinema - Festival Internacional de Curitiba, em junho de 2017.