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    No Intenso Agora
    Críticas AdoroCinema
    4,5
    Ótimo
    No Intenso Agora

    A ideologia da imagem / a imagem da ideologia

    por Bruno Carmelo

    Os primeiros trechos deste documentário revelam uma família se divertindo. Como todas as outras imagens do filme, trata-se de um material de arquivo. Não se conhece as pessoas retratadas, a data exata nem os motivos da evidente felicidade do grupo. Isso não impede o diretor João Moreira Salles de propor uma análise a partir dos elementos que tem em mãos: as roupas, os movimentos, a interação. No Intenso Agora abre-se, portanto, como um exercício em análise de imagens. A ideia é combinar fragmentos históricos conhecidos com registros pessoais de sua mãe na China comunista, atingindo uma espécie de universalidade pela fusão do discurso individual com o coletivo, do privado com o público.

    O projeto é ousado por sua amplitude. O diretor se baseia em imagens de maio de 1968 na França e Tchecoslováquia, da revolução cultural chinesa em 1966 e da resistência contra o golpe militar no Brasil dos anos 1960. Elas representam contextos e reivindicações diferentes, mas têm como denominador comum a luta contra um sistema opressor nas ruas de seus países. Em todos os casos, foram protestos vencedores no plano cultural e simbólico, mas ineficazes no objetivo de romper com as estruturas sociais. A ideia é analisar de que maneira esta derrota efetiva impacta a nossa visão da História e nossa crença na possibilidade de mudanças sociais.

    No Intenso Agora se limitaria à nostalgia caso constituísse um “filme sobre política”. Entretanto, Moreira Salles questiona a imagem da política: a lacuna entre a teoria política e sua prática é comparada com a lacuna entre o mundo e a representação do mundo. O próprio diretor se encarrega da análise em voz off, unindo tempos e cenários distintos numa linha de pensamento única. É impressionante a maneira como registros do cineasta quando criança, correndo num gramado, convivem com pronunciamentos do general De Gaulle à nação francesa. A investigação é abrangente, e poderia incluir outros eventos, outros protestos, além de imagens suplementares do Brasil, sub-representado em relação aos demais países. Mas o raciocínio se pauta pela liberdade associativa ao invés do equilíbrio dos materiais de arquivo.

    Por esta razão, a montagem constitui a ferramenta mais importante do filme. Neste raro projeto em que um cineasta não filmou o próprio conteúdo, a reflexão surge da conversa entre fragmentos. Como resultado, tanto o cinema quanto a política são vistos como formas de imagem em permanente construção. Enquanto os jovens de Paris em 68 eram acusados de destruir uma configuração social sem saber o que propor em seu lugar, Moreira Salles, por ter vivido as desilusões que se seguiram a estes movimentos, oferece um filme capaz de desconstruir conceitos ao mesmo tempo em que fornece reflexões inéditas em troca. É o cinema preenchendo, simbolicamente, o abismo entre a teoria e a prática.

    Filme visto no 67º Festival de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2017.

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