Pai herói
por Taiani MendesNascido no ano de 1934 em Milão, na Itália, Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Marinenghi de Guarnieri veio para o Brasil ainda criança, onde cresceu para revolucionar o teatro nacional. "O que você está fazendo aí? O que você quer de mim?", diz o lendário ator para a câmera em contra-plongée na abertura de Guarnieri. Atenção. É o que Francisco Guarnieri, neto do ator, sempre quis e jamais teve. Gianfrancesco interpretava na série Mundo da Lua o adorável Vô Orlando, mas na vida real mal encontrava o filho de seu filho. Sempre ocupado e distante, mesmo tendo seu sangue correndo nas veias, Francisco decidiu lidar com o incômodo e falta de intimidade realizando um documentário. A premissa pessoal é expandida para o âmbito familiar e torna-se universal ao adentrar o terreno da divisão do tempo, definição de prioridades. “Meu pai não me ensinou a fazer a barba, mas estava fazendo algo muito mais interessante, brigando por vários outros pais”, declara um dos herdeiros de Guarnieri. Uma frase dessa não é ouvida todos os dias.
Composições musicais, fotografias, entrevistas, atuações e ligações telefônicas apresentam o público a Gianfrancesco Guarnieri, a lenda. O material de arquivo ressalta sua importância para a arte nacional e destaca seu discurso sempre riquíssimo, consciente como poucos politica e socialmente, sem papas na língua. Até que somos retirados do estado de encantamento pela exposição da mágoa de Francisco. O neto acredita que nunca teve muito contato com o avô por fazer parte de sua primeira família e vai até o pai, Paulo, e o tio, Flávio, para recolher suas impressões.
Paulo e Flávio seguiram a profissão do pai, abraçaram as artes cênicas e bem jovens tiveram que lidar com as comparações. Se a vida de ator filho de ator já é complicada, imagina a de ator filho de ator/dramaturgo/diretor extremamente engajado politicamente (“arte é política por participação ou omissão”), um dos mais respeitados do país? Não é preciso imaginar muito, pois os irmãos relatam em detalhes suas experiências. Firme em seu papel de realizador buscando material, ignorando e ao mesmo tempo tirando vantagem do parentesco com os entrevistados, Francisco não hesita em cutucar feridas, perguntar de tudo, insistir em pontos delicados, gerar incômodo, traçar e reforçar o paralelo entre ficção e realidade, Flávio e Tião, personagem do clássico Eles Não Usam Black-Tie – aclamada primeira peça escrita por Guarnieri. Sequências da linda versão restaurada da adaptação cinematográfica, dirigida por Leon Hirszman e premiada no Festival de Veneza, estão presentes ao longo de todo o filme e o conflito pai e filho do drama é encaixado muito bem na instigante construção documental de Francisco.
Guarnieri é um documentário que abre espaço para discussões maduras, não coloca o biografado acima do bem e do mal e brinda os espectadores com grandes frases e interpretações. Um longa complexo e em vários momentos doloroso que vai muito além da mera introdução à vida e obra e coloca o público para pensar e repensar, honrando a arte excepcional, destemida e sempre política de Gianfrancesco.