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    Sierra Burgess É uma Loser
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Sierra Burgess É uma Loser

    Catfish

    por João Vítor Figueira

    Shannon Purser se tornou a amiga que toda a internet gostaria de ter quando conquistou corações e mentes com sua atuação no papel de Barb em Stranger Things. Com um minúsculo tempo de tela, a personagem, que na série rapidamente se torna uma das vítimas do monstro-tulipa Demogorgon, foi tida como uma heroína justamente por ser uma pessoa comum, com uma aparência fora dos padrões de beleza que a mídia de massa costuma valorizar, alguém como eu e você, alguém por quem vale a pena torcer.

    Barb conquistou o status de cult num estalar de dedos e a Netflix soube como capitalizar isso. Como num arranjo que nasce do mais perspicaz algoritmo, a companhia uniu Purser, a queridinha de ontem, com Noah Centineo, queridinho de hoje, que se destacou em Para Todos os Garotos Que Já Amei, em um mesmo filme: Sierra Burgess É uma Loser.

    Purser já definiu sua presença em Hollywood como um ato político por poder representar todas as jovens mulheres que não vestem roupas no manequim 38. Logo na primeira cena do filme, sua personagem sai do banho, aparenta ter dúvidas sobre o próprio corpo, mas logo despacha as inseguranças ao olhar para si mesma e dizer o quanto é maravilhosa. A cena parece até uma bem vinda mea culpa interna da Netflix por conta da mensagem desastrosa da série original Insatiable, que tentou combater o body-shamming reforçando discursos negativos sobre pessoas gordas.

    Em seus primeiros minutos, o projeto dirigido por Ian Samuels (em sua estreia na direção de longas-metragens) e roteirizado por Lindsey Beer indica que vai apostar em uma certa subversão no arquétipo da menina desajustada de comédias românticas. Então como, ao final do filme, a história te leva a torcer mais pela "Regina George" do que pela heroína? A resposta está no roteiro problemático que tenta resolver os dilemas do enredo contradizendo o desenvolvimento de seus personagens, criando situações inverossímeis até para um filme tão despretensioso e confundindo a empatia que o filme espera que sintamos pela protagonista com uma carta branca para que se aceite todas as atitudes dela, mesmo as mais questionáveis. Além disso, o milimetricamente calculado apelo à nostalgia soa pouco natural.

    Como em Ela é Demais (baseado na peça Pigmalião, de George Bernard Shaw) ou 10 Coisas Que Eu Odeio em Você (baseado na peça A Megera Domada, de William Shakespeare), Sierra Burgess É uma Loser é uma releitura de uma obra clássica. A comédia romântica toma como base a peça Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, e mostra Sierra (Purser) como garota inteligente e perspicaz, que, apesar de ser uma das pessoas menos populares de sua escola, tem muita desenvoltura para lidar com o bullying que sofre, se orgulha de seu brilhantismo, ambiciona cursar uma faculdade de excelência 0e mantém uma divertida amizade com Dan (RJ Cyler, ótimo). Um dia, Sierra começa a se comunicar com um garoto chamado Jamey (Centineo), atleta de futebol americano que defende as cores de outra escola. O problema é que Jamey acha que está conversando com Veronica (Kristine Frøseth), líder de torcida e abelha-rainha do colégio onde Sierra estuda que ofereceu para o rapaz o número da colega de escola no intuito de constranger a garota que é alvo de seus comentários maldosos. Como em um episódio do programa Catfish, da MTV, Sierra desenvolve uma afeição real por Jamey, que corresponde do sentimento, mas enfrenta o dilema entre continuar fingindo ser outra pessoa ou mostrar quem é de verdade.

    Curiosamente, o que esta comédia romântica tem de menos interessante é seu romance. O plot mais satisfatório e com o melhor desenvolvimento é o que aponta para a relação entre Sierra e Veronica. A nerd e a típica menina malvada. São dois estereótipos muito presentes em produções adolescente que aqui ganham um tratamento mais aprofundado.

    As duas se aproximam quando Sierra oferece aulas de reforço para Veronica em troca da ajuda da cheerleader para manter a farsa com Jamey. Ao invés do maniqueísmo de se pensar uma como mocinha e outra como vilã, logo somos levados a conhecer melhor as duas meninas, suas inseguranças, seus medos e suas jornadas internas em busca de entender quem são e como lidam com as pressões do que se espera delas. A mensagem ganha eco nas atuais discussões feministas sobre a necessidade de se rechaçar a rivalidade sem motivo entre mulheres e é muito bem desenvolvida pelo roteiro (até o terceiro ato). Purser e Frøseth, ambas perfeitas em seus papéis, também mostram muita química em cena juntas, seja nas cenas de inimizade, seja nas cenas em que as duas estão próximas.

    Já a relação entre Sierra e Jamey acaba sendo sabotada pela própria premissa da história. Por mais que seja bela a maneira como é apresentada as conversas dos personagens dos dois ao telefone ("como nos velhos tempos", dizem) e o comentário que o filme faz sobre o impacto nas emoções da intimidade criada em ambientes virtuais, as coisas ficam estranhas quando Veronica começa a participar ativamente do plano de Sierra. É difícil torcer por quem, na verdade, está enganando uma outra pessoa. Com isso, Sierra Burgess É uma Loser acaba romantizando até uma cena que basicamente apresenta como "fofo" um beijo não consensual. O filme raramente problematiza o fato da relação dos dois ser construída com base em uma mentira. Quando a isso finalmente acontece é quando as coisas desandam e Sierra comete um ato mesquinho que revela a farsa para Jamey de forma exageradamente melodramática. Pior: o ato nos faz questionar até mesmo o caráter da protagonista pela maneira como a gravidade do que é feito é sublimada logo em seguida.

    Como era de se esperar em uma comédia romântica projetada para fisgar uma audiência despretensiosa que gostou de Para Todos os Garotos que Já Amei (um grande filme, diga-se de passagem), o final feliz chega quase que de supetão. Mas despretensioso não deveria ser sinônimo de preguiçoso e todos os conflitos são resolvidos quase que num piscar de olhos.

    O diretor Ian Samuels se esforça para canalizar nostalgia pelos anos 1980 em um filme que se passa nos dias atuais com uma fotografia "filtro de Instagram" e uma trilha sonora repleta de sintetizadores e baterias eletrônicas que evocam a atmosfera retrô de maneira forçada, como se o filme precisasse se conectar com a década de qualquer maneira. Outra forma de fazer uma ponte com o passado, mais natural, é a escalação de dois "alunos" de John Hughes, papa dos filmes para adolescentes, no elenco: Alan Ruck (Curtindo a Vida Adoidado) e Lea Thompson (Alguém Muito Especial, De Volta Para o Futuro) interpretam o pai e a mãe de Sierra.

    Em sua primeira vez como protagonista de um longa-metragem, Purser exibe um carisma imenso e bastante segurança no papel, por mais que nem sempre o roteiro a ajude. Sua presença em cena como Sierra é honesta e capaz de cobrir a extensão dramática das necessidades que a protagonista precisa. Da firmeza, que invariavelmente remete (junto com o cabelo ruivo) a Molly Ringwald, à vulnerabilidade. Frøseth também mostra desenvoltura para ir da ardileza à uma atuação de guarda baixa. Centineo, queridinho do momento, tem o charme que o papel precisa, mas a figura de galã prototípico adolescente coube melhor ao ator em Para Todos os Garotos que Já Amei, no qual seu personagem era minimamente mais complexo do que o Jamey-bonzinho-o-tempo-inteiro.

    É válido e necessário que um filme como este possa existir e reivindicar uma premissa que reforça para o direito de uma pessoa de amar e ser amada sendo quem é. Também é importante que uma atriz como Purser possa ter uma chance de diversificar os modelos de protagonista de comédia romântica para adolescentes. Mas faltou profundidade e coerência ao roteiro para este filme conseguir ser mais do que uma diversão despretensiosa na melhor das hipóteses (e um passatempo genérico e incoerente na pior).

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