As grades invisíveis
por Taiani MendesIvan Silva está livre, mas não está. Preso em regime semiaberto, não consegue ser feliz sob a vigilância e bipes constantes da tornozeleira eletrônica – que chama de pulseira. Marrento, malandro, cheio de frases fortes e personalíssimas no repertório e bastante confortável diante da câmera, Ivan é um achado do diretor Pedro Rocha que potencializa a força do documentário Corpo Delito. O nome pode vir da forma como “corpo de delito” é popularmente falado e também da ideia de corpo carregado de infração, julgado culpado mesmo sem fazer nada, unicamente por suas características.
Com o desafio de fazer o público superar barreiras autoimpostas e se interessar por esse homem que cometeu um crime, olhando-o como pessoa e não bandido, e, no melhor dos mundos, compreendendo seu incômodo, o diretor estreante usa a limitação espacial (Ivan não pode sair de casa) a seu favor como ferramenta de criação de intimidade. Compartilhamos sua cama, ouvimos suas conversas, deciframos seu dialeto e testemunhamos as frequentes mudanças de sensação do conforto para a inquietude. Em comparação com a cadeia lotada e o trabalho mecânico na fábrica, é ótimo estar no conforto do lar vendo o jogo do Corinthians, mas aí surge um amigo e comenta das festas, da pista, e o só poder estar ali logo perde todo o encanto e assume caráter de castigo.
Enquadrados nos cantos da tela numa referência à posição marginalizada em que são colocados pela sociedade, os moradores da Favela dos Índios, em Fortaleza, interpretam a si mesmos às vezes com naturalidade, às vezes com exibicionismo, às vezes com vergonha, mas sempre com uma verdade bem direcionada pelo roteiro de Diego Hoefel. Não há preocupação excessiva com a composição de planos impecáveis e o registro é de observação próxima, porém discreta. O cinza do concreto prisional é a cor dominante e o som da televisão responsável pela distração de Ivan é utilizado sem economia, o que aumenta a impressão de passividade que tanto o aflige. O celular sempre à mão é mais um escape.
Guardada a oposição gritante no que tange à importância e valorização da mulher no contexto, Corpo Delito assemelha-se a Baronesa, outro exemplar recente do documentário híbrido focado em moradores de comunidade carente que não escondem suas ligações criminosas. No entanto, enquanto lá a diretora Juliana Antunes não teme expor seus personagens usando drogas e manipulando armas, aqui Pedro opta por diferente tipo de abordagem, igualmente questionável, mas longe do condenável.
Ivan é protagonista competente, mas não insubstituível, e quando toma um caminho que o diretor decide não acompanhar, seu lugar de destaque na narrativa é prontamente ocupado por Neto. A transição se dá de maneira natural e o retrato desse rapaz, fã de roupas de marca que teve um único trabalho na vida e acha que foi o suficiente, enriquece a discussão proposta pelo longa-metragem. Qual é o seu lugar?
O registro do penteado novo é como um mugshot. Livre, Neto sai, mas não se integra ou é acolhido pela sociedade. Dança só na balada, é revistado pela polícia no meio do bloco de Carnaval (melhor sequência do longa, em que as mãos na cabeça dos “escolhidos” para a batida se mistura à coreografia da "Dança do Vampiro", do Asa de Águia) e ouvido fora de seu círculo apenas quando notado como consumidor.
Jovem, periférico e desempregado, tem sua posição “de risco” representada na cena em que é mostrado parado em silêncio com um amigo nos trilhos do trem. A qualquer momento esses garotos podem ser "atropelados" pela polícia, por julgamentos, por olhares preconceituosos, pela morte precoce. Complementando esse panorama há a voz das mães. A de Ivan, cujo desconforto diante da câmera serve perfeitamente ao discurso desconfiado sobre a recuperação do filho e ao mesmo tempo zeloso; a de Neto, que o incentiva com carinho a tomar jeito e crescer; e uma outra que perdeu o filho e representa todas as relações do tipo ao chorar diante do túmulo lembrando o quanto ele a fez sofrer e alegrou. Não existe reação certa ou errada.
Contando com uma longa cena final que contextualiza geograficamente, isola os personagens e indica o céu como limite – ou destino –, Corpo Delito não apresenta futuro esperançoso para o homem periférico estigmatizado, mas simultaneamente tenta reverter esse quadro promovendo a aproximação do espectador de tais figuras, configurando um convite à empatia com energia silenciosa motivadora de transformação.