A ficção da extrema-direita
por Bruno CarmeloNo início, esta ficção se desenvolve através da linguagem do documentário. O diretor Laurent Cantet, fascinado pelos processos pedagógicos e pela estética realista, imagina uma oficina de criação literária, na qual a escritora parisiense Olivia (Marina Foïs) ensina um grupo de jovens de baixa renda, de origens e etnias distintas. Está construído o cenário para um mergulho metalinguístico no potencial das artes e um olhar socioeconômico sobre a França atual, com suas principais vertentes representadas ao redor de uma mesa.
O comentário a respeito da criação artística adquire contornos complexos: enquanto desenvolvem uma história coletiva, os jovens são questionados sobre a necessidade de pesquisa, sobre a escolha entre temas realistas ou fantásticos, atuais ou históricos. Qual seria o valor mais importante do texto: a originalidade, a pertinência aos nossos tempos, a clareza, a representatividade do povo? É possível falar de algo que não se tenha vivido? Todo texto é uma emanação direta da percepção de mundo de seu autor, ou seria possível ter como protagonista uma pessoa que não representa o ponto de vista do escritor?
A resposta a essas indagações essenciais se encontra na ficção que engloba a oficina. Gradativamente, Cantet permite que a vida dos personagens dialogue com o texto que escrevem, ou ainda que a história-dentro-da-história influencie a trama do filme. Entre alguns jovens progressistas e outros reacionários, entre brancos, negros e árabes, o diretor escolhe se focar em Antoine (Matthieu Lucci), jovem branco, introvertido e seduzido pelo discurso de ódio e exclusão propagado pela extrema-direta. O retrato torna-se particularmente relevante na França, onde Marine Le Pen foi ao segundo turno das eleições presidenciais, mas também encontra ecos em diversos países, incluindo o Brasil e a intenção de voto crescente em figuras como Jair Bolsonaro.
Mais do que apontar a existência de uma juventude perigosamente reacionária, o filme pretende compreender como ela se forma. Sem maniqueísmos, A Trama sugere que a formação de ideias xenofóbicas, racistas, homofóbicas e machistas vem de uma mistura de medo e ódio, fomentada pela falta de perspectivas sociais. Sem trabalho, preso a uma cidade que lhe oferece poucas oportunidades, Matthieu busca culpados para seu sofrimento, e encontra a resposta nos párias escolhidos por lideranças neonazistas – sempre as minorias sociais, é claro. A extrema-direita é historicamente associada às classes mais altas, no entanto o projeto busca compreender como sua popularidade cresceu nos meios operários onde o discurso de esquerda circulava com maior facilidade.
O filme se complica, no duplo sentido do termo, quando transita do drama social ao suspense policial. Cantet deseja passar da teoria à prática com o exemplo da transformação de Antoine. O relacionamento de sedução e ódio com a professora Olivia rende bons momentos, graças à excelente atuação de ambos os atores, mas a progressão rumo à fábula é prejudicada pelo registro realista da imagem. Enquanto François Ozon abraçava o absurdo e a fantasia a partir de um tema semelhante em Dentro da Casa (2012), Cantet permanece naturalista mesmo em momentos onde seria mais apropriada a estética do delírio.
A força da narrativa se atenua inclusive na conclusão, onde um belo texto literário é contrastado ao otimismo um tanto artificial. Mesmo assim, A Trama consegue efetuar uma leitura multifacetada da França atual, citando feridas recentes como os atentados de Nice e do Bataclan, além da influência crescente de pensadores racistas como Dieudonné e Éric Zemmour. O drama efetua um importante paralelo entre a ficção policial absurda criada pelos alunos e aquela mais perigosa, mas não menos absurda, defendida pela extrema-direita para seduzir jovens desencantados com a democracia.
Filme visto na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2017.