Cinema ativista
por Francisco RussoNos Estados Unidos, é quase uma tradição: se você for derrotado na disputa pela presidência, não há uma segunda chance. Há exceções, é claro - Richard Nixon perdeu em 1960 para, oito anos depois, ser eleito -, mas esta costuma ser a praxe na política norte-americana. Conhecedor de tal histórico, o ex-vice-presidente Al Gore decidiu se reinventar após perder a controversa eleição de 2000 para o republicano George W. Bush: a partir de então, ele se dedicaria (ainda mais) à defesa do meio ambiente, tendo como bandeira maior a conscientização acerca do risco decorrente da crise climática, que se aproximava cada vez mais rápido.
A partir de uma elaborada apresentação onde se apresentava como um típico showman, mesclando dados contundentes com pitadas de bom humor, Al Gore aos poucos reconquistou seu espaço. Especialmente quando tal palestra se tornou um longa-metragem, o didático e contundente Uma Verdade Inconveniente, aplaudido mundo afora devido à clareza com a qual tratava do tema - não por acaso, vencedor do Oscar de documentário. Uma década depois, Al Gore está de volta ao cinema em uma sequência do longa-metragem. A pergunta é: por que?
Se a resposta óbvia se refere às consequências da crise climática observadas dia após dia, há algo além disto. Veterano, Al Gore sabe bem o poder intrínseco da imagem junto ao público e pôde experimentar, com sucesso, a repercussão provocada pela sétima arte. Desta forma, em um cenário onde, segundo o próprio, "forças se uniram contra o combate à crise climática", nada melhor do que usar o alcance do cinema para, uma vez mais, servir de propaganda aos seus ideais.
Nada contra, muito pelo contrário. Filmes em geral podem perfeitamente ser panfletários, desde que sejam honestos com o material apresentado ao público. A questão é que, se Uma Verdade Inconveniente apresentava uma unidade narrativa bastante interessante, pelo modo dinâmico e instrutivo com o qual tais dados eram apresentados, Uma Verdade Mais Inconveniente soa como uma certa colcha de retalhos. Veja bem: o problema não está na mensagem, mas na forma como é apresentada.
Precisando ir além do que foi mostrado 10 anos atrás, o novo documentário é um misto de atualização da situação mundial neste espaço de tempo com a comprovação de dados divulgados anteriormente. Se no primeiro filme Al Gore se mantinha no palco, aqui ele vai até onde o problema acontece. Um exemplo é a cena inicial do longa-metragem, que retrata imensos blocos do Ártico derretendo e as temidas poças d´água sob o manto de gelo, tão citadas no primeiro filme.
Com novos diretores - sai David Guggenheim, entram Bonni Cohen e Jon Shenk - e uma produção mais elaborada, Uma Verdade Mais Inconveniente deixa de lado o estúdio dominante no longa original - sem abandoná-lo por completo, é importante ressaltar - e assume de forma escancarada a personificação de seu apresentador. O passado de Al Gore é esmiuçado, com direito a uma bem-humorada menção à derrota presidencial e diversas referências ao trabalho como militante ambientalista. Mais ainda: o documentário se esforça em ressaltar sua participação na política ambiental mundial, como demonstram as reuniões com políticos da Índia e sua atuação no COP21, a conferência sobre o clima realizada em 2015, em Paris. Por mais decisiva que tenha sido sua presença, tamanho destaque em cena soa mais como promoção pessoal do que propriamente defesa de um tema tão importante - e isto, em um filme com tais objetivos, incomoda.
Ainda assim, Uma Verdade Mais Inconveniente tem seus méritos. Se mais uma vez apresenta inúmeros casos onde é possível notar a interferência da crise climática no cotidiano das pessoas, mostra também soluções adotadas mundo afora, especialmente em relação à obtenção de energia limpa. Questões importantes são tratadas de forma pontual, como o pouco destaque ao tema dado pela mídia em geral, a ascensão do terrorismo como temor global e a necessidade em recrutar novos apoiadores, um dos principais argumentos para a existência desta sequência. Por outro lado, a direção da dupla Cohen/Shenk destoa devido à edição manipuladora em certos momentos e ao uso de uma trilha sonora típica de suspense, especialmente no trecho reservado ao COP21, em uma tentativa de trazer algum ritmo à negociação de bastidores.
Político por natureza, Uma Verdade Mais Inconveniente cumpre a função de trazer de volta à pauta a importante questão da crise climática - por mais que, assim como o original, praticamente desconsidere África e América do Sul no cenário global. Entretanto, diante da abrangência do primeiro filme, sofre com uma unidade narrativa fragmentada em sua busca por situações que poderiam ir além do que já foi apresentado, o que faz também com que resvale no personalismo de seu idealizador. Ainda assim, trata-se de um documentário interessante, por mais que esteja longe da relevância e coesão demonstradas em Uma Verdade Inconveniente.
Filme visto no 70º Festival de Cannes, em maio de 2017.