Uma das coisas que mais dificultam as relações humanas atualmente talvez seja o fato de sermos seres muito apegáveis a bens materiais. Seja um celular, um carro, uma camiseta ou até uma casa – como é o caso do personagem de Casey Affleck em A Ghost Story – uma das viagens mais pessoais, intrigantes e fascinantes sobre a existência humana que o cinema já nos proporcionou nos últimos anos.
O diretor (e também autor do roteiro) David Lowery expressa de uma maneira bastante visceral este ponto de vista, atrelado as dificuldades que temos de conseguirmos nos satisfazermos por completo na vida – afinal, qual o sentido de viver? Será que somente sendo reconhecido por nossos feitos ou se tivermos vivido um amor real (ou que pelo menos pareça real) poderíamos dizer que vale a pena existir?
Não é a toa que o filme faz uma referencia escancarada a Nietzsche – incluindo uma cena onde um livro do filosofo realmente aparece – as referencias sobre o existencialismo estão presente por quase todo o longa – e quando digo “todo o longa” estou tentando insinuar que Lowery planejou cada cena com um significado especifico e importante para a compreensão de toda sua história – contando a vida de um casal (Affleck e Mara), que moram juntos em uma casa. Ele (mencionado como “C” nos créditos finais) sofre um acidente de carro e falece – mas seu espirito/fantasma aparentemente não quer ir embora e acaba voltando e ficando na casa, acompanhando o dia a dia de sua companheira “M” (assim mencionada nos créditos) – sem entender o proposito de sua existência após a morte, ele começa a notar que a passagem de tempo torna-se algo irrelevante – conforme a vida de sua amada começa a mudar – e sua obsessão por encontrar e saber o que está escrito em um pequeno pedaço de papel, que M escondeu em uma fresta de uma parede da casa, faz com que ele se sinta ainda mais preso ao local.
Usando a figura do fantasma no modo mais clássico possível – com Casey Affleck debaixo de um lençol branco com dois furos pretos na parte dos olhos – o resultado que o Lowery alcança em A Ghost Story é inquietante – ao invés de mostrar um fantasma que põe medo nos demais, ele nos apresenta a um espirito que vaga pela terra (ou melhor, o local de sua casa quando era vivo) sem um proposito, mas que permanece esperando por isso – o que o diretor consegue, de fato, é trazer um tipo de terror psicológico sobre a própria existência do ser humano – o que explica o filme ser classificado como um “pós-terror”, como alguns críticos vem dizendo.
Como um fantasma que não se conforma em ter morrido (logo após sua saída do hospital ele “recusa” entrar em uma “porta de luz”, digamos assim), o personagem de Affleck vai passar por uma viagem tortuosa – vendo sua amada em desespero ou tentando de maneiras pouco bem sucedidas superar a perda de seu companheiro – e devo admitir que Lowery consegue demonstrar isso de forma muito incomoda – a cena onde presenciamos a esplêndida Rooney Mara comendo uma torta inteira (praticamente sem cortes) serve para mostrar seu estado de profunda depressão e insatisfação com a vida – além de evidenciar como o passar de tempo para o fantasma é praticamente irrelevante – existem ainda algumas demonstrações de passagem de tempo brilhantes – tornando o tempo em algo mais próximo do que seria sobre o ponto de vista de um espirito, realmente – notória a cena onde Affleck observa Mara saindo diversas vezes pela mesma porta, exemplificando os dias se passando em segundos.
Com uma direção de arte bem simples, mas muito bonita, o filme é dotado de um visual fascinante – é importante ressaltar como a casa e os demais locais que o filme apresenta são tratados quase como se fossem um outro personagem, incorporado ao fantasma de Affleck – afinal, a conquista de um lar pode gerar uma sensação de fazermos parte daquele local, mesmo que ali outras pessoas e situações já tenham passado – mas ninguém permaneceu para sempre, é claro.
Ajudado por uma fotografia carregada de cores claras, sempre remetendo ao branco do lençol do fantasma, demonstrando algum tipo de pureza ou uma espécie de nulidade de opinião sobre o que vê nesta vida após a morte – fora o fato de que o formato do filme nos remete a algo mais intimo – se assemelhando ao formato de tela de uma TV antiga ou de uma foto polaroide, possibilitando angulações fechadas, que passam muito bem o calor humano e realístico (com seus problemas de comunicação no começo) da relação de C e M – que jamais escamba para algo apelativo sentimentalmente – assim como a inserção da música – C é produtor musical e uma de suas produções é usada de forma tocante – principalmente pela apurada edição de imagens – em momento onde M relembra do falecido marido, em meio a flashbacks de quando ela ouviu a canção pela primeira vez.
Mas, afinal: o que estava escrito no papelzinho que M deixou na parede? O que ela escreveu no papel pode ser algo bom ou ruim para o personagem de Affleck, mas só faria sentido para ele – pois seria o momento em que ele finaliza sua missão, descobrindo se sua vida ou seu amor pela personagem de Rooney vale ou não a pena – ou seja, ninguém mais poderia entender.
Enfim, é uma obra extremamente pessoal, instigante e inteligente, ao conseguir fazer com que nos identifiquemos com um fantasma – que, diferentemente de um Patrick Swayze em Ghost, não pode mostrar para nós suas expressões diretamente, podendo apenas senti-las – espelhando, com isso, uma forma de dizer que somos todos fantasmas, que podemos não ser notados pelos outros ou que podemos ser esquecidos um dia – e talvez somente um fantasma entenda isso de verdade, mas, no final, o que importa é justamente o que vivenciamos, unicamente sob nossa própria perspectiva.