Vícios endêmicos
por Francisco RussoExiste um certo tipo de documentário onde jamais é possível saber de antemão qual é o seu rumo, já que a ideia colocada em prática depende fundamentalmente dos acontecimentos do dia a dia. Quanto mais inusitados eles são, mais valioso é o olhar aprofundado de quem o acompanha bem de perto. É o que acontece com The Force, vencedor do prêmio de melhor direção no Sundance Film Festival.
A proposta inicial do diretor Peter Nicks era acompanhar o trabalho feito dentro da policia de Oakland de forma a retirar dela a pecha de a mais violenta e a que menos respeita os direitos civis, nos Estados Unidos. Por mais que não justifique o porquê de tal título, Nicks envia uma sutil mensagem ao espectador mais atento: ao mostrar um ônibus, o foco da câmera se volta para seu destino final. Trata-se da Fruitvale Avenue, local onde, em 2008, um jovem negro inocente foi morto por dois policiais - história esta retratada no ótimo Fruitvale Station - A Última Parada. Quem já viu, ou conhece o ocorrido, imediatamente compreende o porquê de tal fama.
Detalhe histórico a parte, o objetivo inicial do documentário era acompanhar os esforços do chefe Whent em reverter tal situação. Para tanto, diversos são os cursos ministrados aos jovens policiais, sempre prezando a ética e o respeito ao cidadão. Exercícios internos buscam um maior controle em situações extremas - "você não tem direito ao pânico", diz um instrutor, seguido por imagens tensas envolvendo policiais e manifestantes nas ruas -, assim como tem início uma política de transparência em relação aos atos dos policiais, já que eles passam a carregar minicâmeras e o material filmado através delas é disponibilizado ao grande público, como meio de se melhor compreender a ação da polícia.
Distante desta proposta, The Force tinha tudo para ser um documentário quase institucional sobre a polícia de Oakland. Não propriamente no sentido de exaltá-la, já que reconhece seus erros e problemas, mas de ao menos mostrar a intenção em fazer um trabalho melhor. Só que a vida, mais uma vez, surpreende. E é a partir dos seguidos, e súbitos, escândalos que explodem que o longa-metragem torna-se cada vez mais interessante.
Isto porque, a partir dos novos fatos que vêm à tona, é possível notar o lado amargo de personagens até então apresentados como modelo do bom policial. Tamanha dualidade põe em dúvida não apenas o trabalho feito até então, mas a própria incapacidade de se gerir pessoas de forma a eliminar, por completo, desvios de conduta. Seriam eles intrínsecos ao ser humano em sociedade? Ou um produto do próprio meio que é a organização policial?
Sem qualquer previsão inicial, tais questionamentos surgem naturalmente a partir dos fatos narrados. Ao diretor Peter Nicks e sua equipe, coube o mérito de estar no lugar certo na hora exata, e não se omitir diante de tamanha reviravolta. É nítida a intenção em esmiuçar tal situação, mais até em ressaltar o quão incômodo tudo se torna do que propriamente em encontrar uma resposta definitiva. Esta, no fim das contas, é bem mais complexa do que uma mera palestra sobre ética e bons modos.
Rodado com muita câmera na mão, até mesmo para dar vazão ao seu tom realista, The Force é um documentário instigante sobre a vida em sociedade. Mais até do que retratar a força policial, diz muito sobre o legado existente a partir de séculos de mazelas sociais, que eclodem com força nos dias atuais devido ao desdém com o qual foram tratadas até então. Assim foi no caso de Fruitvale Station, assim também é no Brasil. Afinal de contas, por mais que retrate uma polícia norte-americana, os fatos e modelos retratados não são tão distintos assim do existente em qualquer grande cidade brasileira.
Filme visto no CPH:DOX, em março de 2017.