Um filme enrustido
por Bruno CarmeloA princípio, é difícil determinar em que época se passa a trama de Temblores. Julgando pela cena de abertura, com a família dentro de um casarão antigo, ostentando seus colares de pérolas e prataria valiosa, poderíamos nos situar cem anos atrás. A textura granulada da película com a fotografia contrastada e soturna remete ao cinema espanhol dos anos 1970 (Cría Cuervos, O Espírito da Colmeia). Mas então Pablo (Juan Pablo Olyslager) aparece num barzinho, tomando cerveja com um sujeito tatuado, e percebemos que a história se desenvolve no tempo presente.
Talvez o contexto se apresentasse com maior facilidade se Pablo não fosse um protagonista tão opaco. Este pai de família descobre seu primeiro amor por outro homem, a ponto de abandonar a esposa e as crianças para viver com o namorado, mas quando estão juntos, não demonstra o menor afeto pelo rapaz. O homem diz amar profundamente os filhos, mas quando se torna alvo de artimanhas maquiavélicas da família conservadora, não briga contra a decisão do juiz que o proíbe de ver as crianças. Ele nunca pareceu a pessoa mais religiosa do mundo, no entanto embarca numa febre evangélica a ponto de coletar o dízimo com cartão de crédito para a pastora.
Pablo é uma figura dividida entre dois mundos, algo que o diretor Jayro Bustamante deixa muito claro. É compreensível que estes mundos sejam estética e narrativamente incompatíveis. No entanto, eles parecem não fazer parte do mesmo filme. As sequências com o namorado são leves, enquanto o núcleo católico é tratado com tanto peso que beira a caricatura novelesca da família burguesa. O que mais incomoda é o conformismo com que as esferas se chocam: Pablo é humilhado, agredido e acusado de pedófilo do início ao fim, no entanto apenas se cala. Este tratado sobre o estoicismo gay, ou sobre a culpa decorrente da moral cristã, se encaminha a algum ponto de explosão. É preciso que o protagonista reaja, certo?
Atenção: possíveis spoilers a seguir
Não exatamente. Temblores surpreende por manter a passividade do protagonista até o fim, quando consente em passar por uma terapia de conversão (a “cura gay”). É perfeitamente possível retratar tal procedimento com distanciamento, porém Bustamante não se mostra crítico ao processo de “heterossexualização” do homem injustiçado. É possível ler, no final aberto coroado por um sorriso infantil, que Pablo realmente levou uma vida melhor depois de reprimir sua atração por pessoas do mesmo sexo. É possível também ver nas práticas da pastora um método abusivo, uma lavagem cerebral. O problema se encontra exatamente nesta indefinição.
Embora o filme não seja obrigado a adotar lados e lançar denúncias, seria importante ele dizer o que de fato pensa sobre os temas morais que aborda, especialmente em tempos de reação tão forte contra a livre expressão da (homo)sexualidade. Aliás, a terapia de conversão não seria tema de tantos longas-metragens se não fosse pela época paranoica em que nos encontramos. No entanto, abordar todas as opiniões como igualmente válidas soa irresponsável, ou pelo menos condescendente com a violência sofrida por Pablo. Rumo à conclusão, a narrativa abandona o namorado Fernando, para de investigar os sentimentos de Pablo para entregar o protagonismo voz à família conservadora. Talvez esta não devesse constituir uma surpresa: desde a primeira cena, são apenas os religiosos que realmente se expressam e tomam atitudes. Pablo permanece no estado de mártir dos pecadores.
Filme visto no 69º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2019.