Guerras de hoje e de ontem
por Bruno CarmeloO ponto de partida deste drama alemão é bastante arriscado. Trata-se de uma dessas ideias que poderia ser facilmente considerada genial ou ridícula, de acordo com o ponto de vista. Após construir dramas sóbrios como Barbara (2012) e Phoenix (2014), o diretor Christian Petzold ousa conceber uma França dos dias atuais, em pleno século XXI, ocupada pela Alemanha nazista. Em outras palavras, a Segunda Guerra Mundial está acontecendo hoje. O alemão Georg (Franz Rogowski), morando na França, tenta escapar do país antes de ser pego pela polícia.
O cineasta toma algumas precauções com seu tema espinhoso: primeiro, nada de ficção científica, de viagens no tempo, de contextualização histórica. A situação política é dada como fato, uma espécie de leitura alternativa dos acontecimentos, sem relação direta com os fatos de 1939 a 1945 - ou seja, esta não é uma continuação ou reedição da guerra anterior. Estamos em batalha, simples assim, e os personagens são perseguidos, precisando fugir desesperadamente. Nas ruas, homens com metralhadoras caçam a todos. Se a outra guerra, aquela real, existiu dentro dessa história, não sabemos. Esta é uma História do tempo presente.
Por estarmos em contexto atual, aos personagens possuem carros modernos, as paredes têm pichações, as placas de ruas são as mesmas a que estamos acostumados. Em outras palavras, desaparecem o prazer - e o distanciamento - da reconstituição de época. Petzold busca incomodar o espectador pela transposição do policiamento à contemporaneidade. Não se trata mais de acontecimentos distantes e inacessíveis: somos forçados a imaginar os efeitos do patrulhamento nazista em pessoas e cenários muito próximos de nossas vidas cotidianas. Aquelas pessoas com roupas, cortes de cabelo e maneiras de falar atuais poderiam ser qualquer um de nós.
Transit dá um passo adiante quando introduz o drama de uma família de imigrantes ilegais na França, prestes a serem deportados. O conflito desta mãe e seu filho é retratado com sobriedade, enquanto a ligação deles com o drama pessoal de Georg é simbólica, sutil. Petzold sabe que trabalha com uma metáfora clara entre a perseguição a judeus no século XX e a perseguição a imigrantes no século XXI. Não há necessidade de reforçar a relação entre ambos - o filme confia na inteligência de seu espectador. Deste modo, insinua que repetimos os erros do passado e que nossos antigos aliados tornaram-se vítimas poucas décadas mais tarde.
Esta sugestão forte é retratada com a delicadeza de uma história de amor. O ponto mais estranho do projeto reside na abordagem de temas espinhosos com a banalidade de quem filma o quotidiano de uma família qualquer. Não por acaso, o roteiro investe muito tempo e energia ao triângulo amoroso entre Georg, a francesa Marie (Paula Beer) e o médico Richard (Godehard Giese). Assim, pode deixar a questão política em segundo plano, afetando organicamente a vida dos personagens. Este não é um drama sobre os refugiados, e sim um romance no qual os refugiados possuem grande importância – algo que dilui o peso do tema e ajuda a tornar mais plausível sua premissa. Guerras mundiais no século XXI são desconhecidas, mas histórias de amor continuam universais.
Aliado à simplicidade da abordagem, o diretor extrai atuações contidas de seu elenco e opta por enquadramentos discretos, reforçando a plausibilidade desta História alternativa. Rumo ao final, a trama ousa se arriscar um pouco mais na fantasia, levando o espectador a questionar se as imagens que está vendo, ou se as imagens vistas uma hora atrás, são reais. A dúvida sobre a veracidade das imagens e sobre a subjetividade da representação constitui uma última e importante camada de Transit, um produto de narrativa improvável, discurso político evidente e embalagem de um presente simples.
Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.