O homem calado
por Francisco RussoÉ preciso olhar com atenção para Adam McKay. De longa carreira na comédia, ele se reinventou ao encampar uma proposta corajosa: destrinchar a complexa crise imobiliária que atingiu em cheio a economia norte-americana em 2007, no contundente e ótimo A Grande Aposta. Para driblar - ou amenizar - o didatismo, McKay brincou (e ousou) ao explorar um sem-número de citações à cultura pop, de forma a aproximar o espectador ao conteúdo retratado. Sempre em tom crítico e sarcástico, o que ainda trouxe dinamismo e ritmo à narrativa.
Três anos depois, McKay retorna com a mesma proposta ao cutucar um cenário ainda mais espinhoso: a política. Para tanto, personifica sua análise na figura do ex-vice-presidente Dick Cheney, o todo poderoso nas sombras no duplo governo de George W. Bush. Sem jamais esconder sua posição contrária ao "homenageado", McKay - que também assina o roteiro - vai além do mero relato de vida ao propor uma análise sobre as entranhas do jogo político, por vezes cíclicas, e o quanto certos atos e posturas são intrínsecos não só aos Estados Unidos, mas a outros países - o Brasil especialmente, como fica escancarado na citação ao governo de Jimmy Carter.
É neste aspecto que Vice, em vários momentos, alcança a grandeza. Seja nas brincadeiras de linguagem ou mesmo nas análises macro, McKay demonstra uma necessária clareza aliada a um impressionante jogo de cintura em como contar esta história, de forma que seja ao mesmo tempo aprofundada e atraente às gerações contemporâneas, entediadas cada vez mais rápido. Em seu segundo filme sob as mesmas regras, não é exagero dizer que o diretor alça ao posto de criador, no sentido de estabelecer uma linguagem própria que permita o fácil reconhecimento de sua assinatura cinematográfica - algo para poucos, é bom ressaltar.
Ainda assim, apesar de momentos de puro brilhantismo - atenção à cena pós-créditos! -, McKay por vezes cai na armadilha do exagero, especialmente quando opta por ridicularizar seu personagem-símbolo. Se Dick Cheney é ardiloso, sempre atento às oportunidades que a vida traz, tal característica é muito bem retratada a partir do tom crítico da própria narrativa. Porém, especialmente na primeira metade, a ojeriza ao que Cheney significa é tamanha que o diretor/roteirista/criador tende ao retratá-lo a partir da vulgaridade ou mesmo do excesso. Se tal proposta por um lado até faz rir, por outro é perigosa por menosprezá-lo - o que fica bem claro mais adiante, com as consequências de seus atos como vice-presidente.
Na construção deste personagem das sombras tão emblemático, é importante também ressaltar o meticuloso trabalho de transformação executado pelo camaleão Christian Bale. Mais do que apenas engordar 20 quilos, o Bale que conhecemos desaparece na postura desleixada e no jeito de falar de Cheney, buscando o mínimo de expressividade - reflexo também de seu tom sempre seco. Tal característica traz ainda uma consequência: por mais que seja um esforço de mimetização impressionante, a postura de Cheney nega ao ator cenas de clímax, tão comuns em filmes indicados ao Oscar. É na desconstrução de sua persona e na coesão corporal deste homem calado que está o brilho maior desta interpretação.
Tal desempenho, por outro lado, não deve ser creditado ao restante do elenco. Por mais que Amy Adams tenha uma boa atuação em uma personagem de pouco destaque, está longe dos principais papéis de sua carreira - leia-se Sharp Objects e A Chegada. Já Sam Rockwell se resume a uma mera cópia visual de George W. Bush, se atendo aos cacoetes tão conhecidos do ex-presidente dos Estados Unidos, enquanto Steve Carell é uma mera caricatura dos trejeitos de Donald Rumsfeld. Em Vice, não cabe ao elenco o brilho maior do longa-metragem, mas sim à linguagem empregada por seu criador.
Incisivo e necessariamente crítico, Vice ainda aponta o dedo (e justifica) a valorização do escapismo como meio de suportar a complexidade de uma realidade cada vez mais pesada, tão comum nos dias atuais - nos Estados Unidos e também no Brasil. Neste breve retrato da recente política norte-americana, McKay apresenta assuntos densos em uma linguagem pop, de forma a torná-los acessíveis ao grande público sem jamais se ater de um posicionamento político próprio - inclusive, o filme faz piada de tal postura. Se possui um certo desnível de ritmo, e até mesmo um deslocado tom solene após a posse de Cheney como vice-presidente, tal irregularidade não ameniza a capacidade de McKay em, mais uma vez, construir uma narrativa própria a partir de um imenso manancial de tecnicidades, de forma a explicá-lo - e entreter - sem menosprezar a inteligência do espectador.