O ex-beatle John Lennon (1940-1980), em uma das várias entrevistas concedidas após a dissolução do grupo, disse que "Há sempre uma grande mulher atrás de cada idiota". Ao conhecer sua segunda esposa, a japonesa Yoko Ono (1933- ), o próprio John reconheceu que tornou-se mais feminista, pois Yoko abriu-lhe os olhos quanto ao machismo e a opressão que as mulheres sofrem em nossa sociedade até os dias de hoje, mesmo com as muitas conquistas obtidas por elas. Esse feminismo de Lennon está refletido na canção de autoria do casal, Woman is The Nigger of The World (A Mulher é o Negro do Mundo).
Em um daqueles casos no qual a vida imita a arte, a frase de Lennon pode ser encaixada na premissa d' A Esposa.
Joan Castleman (Glenn Close, de Ligações Perigosas) é a esposa do afamado escritor Joe Castleman (Jonathan Pryce, da franquia Piratas do Caribe), que foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. Joseph conquista o prêmio e ele, Joan e o filho, David (Max Irons, de Colheita Amarga), viajam para a capital da Suécia, Estocolmo, para receber o prêmio. No mesmo avião, segue o jornalista Nathaniel Bone (Christian Slater, de Jovens Demais Para Morrer) que insiste em escrever uma biografia de Joseph. Ao chegarem ao seu destino, vários fatos que lá ocorrem fazem com que Joan comece a questionar e repensar a sua vida com Joseph desde quando conheceram-se até aquele momento.
Baseado no romance da escritora Meg Wolitzer, A Esposa é uma produção independente que retrata um tema ainda muito em voga nos tempos atuais: a mulher posta em situação de inferioridade em relação ao homem independente de sua cor, raça, credo, origem, condição intelectual, social e/ou financeira.
Uma cena que retrata bem esse tema é quando a jovem Joan (Annie Starke, de A Beira do Abismo) vai pedir conselhos com a escritora Elaine Mozell (Elizabeth McGovern, da série Downton Abbey) e esta a desencoraja, pois, mesmo sendo ela mesma uma autora talentosa, respeitada e de opiniões firmes, foi posta em um patamar abaixo dos autores masculinos.
O diretor sueco Björn Runge é pouco conhecido fora de sua terra natal, mas tem uma sólida carreira tanto no cinema quanto na TV locais. Chamou atenção ao conquistar o prêmio "Blue Angel" no Festival de Berlim, em 2003, com o filme Ao Romper do Dia. A Esposa é a sua primeira produção internacional de destaque na qual trabalha com grandes astros e estrelas (embora já tenha feito vários filmes com a sua conterrânea Pernilla August, da saga Star Wars).
Runge tem uma mão experiente e segura em seu trabalho de direção e faz o filme fluir bem, inclusive na transição para as cenas de flashback. A Estocolmo que mostra ao público é bela e fria, mas não de uma frieza indiferente, mas que envolve e toca as emoções. Nisso é ajudado pela bonita fotografia de Ulf Brantas (de Nós Somos as Melhores!).
Ainda que sem nenhuma intenção deliberada, Runge insere o feminismo de John Lennon na trama para que todos - em particular os homens - possam tanto acompanhar como compreender o sacrifício e a submissão de Joan a Joe desde que esse era um jovem professor universitário (vivido por Harry Lloyd, da série Game of Thrones).
No início, Joan nos passa a impressão que é um mulher tímida e decididamente caseira, dedicada ao lar, os filhos, o marido ("Já tomou o seu remédio?") o qual, com sua personalidade dominadora, sempre a deixa sob sua sombra, como uma medíocre "mulher invisível".
Porém, à medida que o filme corre, pode-se perceber que Joan é realmente tímida, mas não é "invísivel" ou medíocre - embora pareça assim aos parentes e amigos. É muito inteligente e tem tanta nobreza dentro de si que está disposta a fazer os maiores sacrifícios, o que incluía uma possível carreira brilhante como escritora em sua juventude, para apoiar a do marido. Por amor, fica submissa.
Joe é o idiota ao qual se referia Lennon. Carreirista, mulherengo, cínico e ganancioso, é o perfeito estereótipo do macho bobo que, com sua dominação sobre a mulher aliado ao seu carisma pessoal, consegue disfarçar seus defeitos de caráter e adquirir fama, mas, no fundo, sabe que ele é o medíocre ao invés de Joan.
Seu domínio tirânico atinge igualmente o filho, David que, apesar de estar a par de como o pai trata a ele e a mãe, quer desesperadamente seu amor e aprovação para que, assim, possa libertar-se da dominação paterna e ter sua própria vida e carreira.
Max Irons é daqueles atores que vão melhorando a cada filme e, em um curioso paralelo com seu personagem, deixa gradativamente de ser o filho de Jeremy Irons (Liga da Justiça) para ser um astro com brilho próprio. O mesmo vale para Annie Starke que - para aqueles que ainda não sabem - é filha de Glenn Close, e para Harry Lloyd, tetraneto (!) do escritor Charles Dickens (1812-1870).
Não é a primeira vez que Christian Slater interpreta um jornalista (fez um papel semelhante em Entrevista Com o Vampiro) que, aqui, é também uma mistura de biógrafo com paparazzo, doido para descobrir algum "podre" da família Castleman e incluí-lo no livro que quer escrever sobre Joe. Ele também é a ponte que leva o público a descobrir o segredo de Joe e Joan.
O inglês Jonathan Pryce foi uma ótima escolha para interpretar Joe Castleman. Mesmo fazendo bem o sotaque estadunidense (Joe é dessa nacionalidade), mantém a fleuma britânica, o que dá um toque blasé que aumenta a autenticidade do personagem interpretado.
Afinal, mas não por último, temos Glenn Close.
Atriz versátil e extremamente talentosa que interpreta com a mesma convicção personagens tão díspares como a psicopata sexy Alex Forrest, de Atração Fatal (1987); a rainha Gertrude, em Hamlet (1990); a primeira-dama dos EUA Marsha Dale, em Marte Ataca! (1996); e traveste-se em homem no filme Albert Nobbs (2011).
Em A Esposa, Glenn está na sua maturidade e no seu auge como mulher e atriz em um trabalho magnífico de interpretação. Na cena em que Joe faz o discurso de agradecimento do Prêmio Nobel e o dedica a Joan, Glenn, sem dizer uma única palavra, consegue transmitir emoções tão fortes e conflitantes que é difícil não ficar impressionado e comovido.
Nesse conflito de emoções podemos perceber a grandeza da mulher que durante tantos anos acompanhou e apoiou um idiota e que, finalmente, liberta-se de sua "invisibilidade" e tem a sua hora e vez.
A atuação de Glenn já lhe valeu os prêmios de melhor atriz dramática no Satellite Awards, em 2018, e o Globo de Ouro deste ano, no qual derrotou a favorita Lady Gaga, de Nasce Uma Estrela (2018).
Falta o Oscar, prêmio para o qual já foi indicada seis vezes. Desta vez virá? Ainda é preciso aguardar as indicações, mas, se Glenn for indicada, atrevo-me a dizer que ela será a grande favorita ao prêmio. Porém, o Oscar é conhecido por suas injustiças...
A Esposa é um filme que leva a várias reflexoes sobre amor, casamento, solidão, machismo como intsrumento de opressão que atinge principalmente as mulheres, mas também minorias como a comunidade LGBT, afrodescendentes e os índios; e o feminismo como instrumento de compreensão das almas das mulheres.
Nesta era das trevas a qual vivemos atualmente e sob um governo fascista que quer destruir os direitos sociais que tão arduamente foram conquistados pelo povo, A Esposa é um filme que nos dá a certeza que a opressão e a tirania, por mais tempo que durem, inevitavelmente caem e nem mesmo uma "invisibilidade" imposta pode impedir essa queda.