Os miseráveis
por Bruno CarmeloÉ fácil para o público se identificar com o personagem principal deste drama. Zain, doze anos de idade, vive num cortiço com a mãe, o pai e vários irmãos menores. É ele quem cuida das crianças pequenas, enquanto trabalha numa mercearia. Um dia, por oposição ao casamento forçado da irmã de onze anos de idade, abandona o lar e descobre um mundo ainda mais difícil, dormindo nas ruas, encontrando refugiados e cuidando sozinho do bebê dos outros. Capharnaum desenvolve a longa jornada de sobrevivência de um garoto de temperamento forte e maturidade inesperada para a idade.
Felizmente, o filme conta com protagonista excepcional. Zain Al Rafeea é uma criança de gestos fortes, grande desenvoltura diante das câmeras, capaz de interpretar planos ininterruptos com longos diálogos e conduzir momentos de explosão emocional com facilidade. Ele consegue falar tanto com sotaque libanês quando sírio. A diretora Nadine Labaki confia muito no ator, em quem aproxima a câmera durante a grande maioria das cenas. Como o mundo é visto pelos olhos da criança, precisamos confiar nas atitudes impulsivas de Zain. Al Rafeea não tem dificuldade em desempenhar esta tarefa.
Os aspectos técnicos contribuem bastante ao resultado. A montagem, em especial, opta por planos curtos e muito bem entrelaçados, reforçando a dinâmica desta bagunça (significado da palavra “capharnaum”) e impedindo o melodrama intenso – ao menos durante boa parte da trama. Quando alguma notícia ruim chega ao pequeno Zain, a montagem corta imediatamente, busca os olhares das ruas, o barulho dos carros, de outras pessoas gritando, dos bebês chorando. O universo bruto é bem desenvolvido pelo ritmo ágil da câmera e pela fotografia bem desenhada, trabalhando os raios de sol enquanto a câmera na mão só treme exageradamente nos momentos de desespero (fuga, perseguição). Para inserir a pobreza de Zain num contexto mais amplo, drones se elevam às alturas, revelando que para todos os lados, o garoto encontrará as mesmas dificuldades.
Diante de uma obra tão bem orquestrada tecnicamente e narrativamente, apenas a visão de mundo incomoda. Capharnaum é um ótimo drama de personagens, oferecendo uma eficaz constatação da miséria, no melhor estilo cinema-verdade. No entanto, limita-se à observação crua dos problemas. Em momento algum o filme busca entender de onde vêm os conflitos, com que esferas institucionais se relacionam, de que maneira poderiam se desenvolver. Os ricos não existem neste mundo de miseráveis, composto por crianças famintas, bebês abandonados, refugiados escapando da polícia e pequenos comerciantes praticando tráfico de pessoas. O olhar poderia ser taxado de conformista. Ele busca a evidente sensibilização do público, mas caso este realmente se engaje com as trajetórias humanas em tela, o que fazer com este sentimento de revolta?
A narrativa condensa seus conflitos num último terço fortemente sentimental. As lágrimas evitadas até então correm soltas no rosto da maior parte dos personagens, a trilha sonora de pianos e violinos invade as cenas, as câmeras lentas reforçam a dor de uma mãe no meio da rua, a promessa de tragédia se concretiza. Dentro do cinema, muitas pessoas estavam em lágrimas – e como não estar? Capharnaum apela aos sentimentos, à empatia humana, a uma espécie de olhar exótico a uma realidade distante do público médio do cinema, a quem o filme estende a mão. No final, o espectador tem a catarse prometida, sai de “alma lavada”, como diria o conhecimento popular, e com a consciência tranquila por ter compartilhado durante duas horas o drama daquelas pessoas. Enquanto projeto político, no entanto, o discurso é retórico: ele apela a bons sentimentos, à evidência da alteridade. Depois, fecha-se em si mesmo, não aponta horizonte algum.
Filme visto no 71º Festival Internacional de Cannes, em maio de 2018.