Made in Brasil
por Francisco RussoO bom fã de quadrinhos sempre presta muita atenção na autenticidade de seu personagem e/ou história favorita quando é enfim adaptado ao cinema. Afinal de contas, todos querem ver nas telonas aquilo que os encantaram na leitura, sem deturpações decorrentes de limitações financeiras ou com o objetivo de alcançar um público mais amplo - Deadpool que o diga! Tungstênio, baseado no livro em quadrinhos homônimo escrito e desenhado por Marcello Quintanilha, pertence ao grupo dos que pregam que fidelidade é tudo!
Situado em Salvador, Tungstênio passa longe de super-heróis ou caricaturas ao retratar um grupo de personagens gente como a gente, com méritos e defeitos, prestes a colidir em uma narrativa sempre à beira de um ataque de nervos. Assim conhecemos seu Ney, um sargento aposentado que carrega resquícios da ditadura a partir do autoritarismo latente, em seus atos e falas. Revoltado ao descobrir que dois homens estão usando dinamite para capturar peixes, ele parte em busca de alguém que possa prendê-los, o quanto antes. Ao seu lado está Caju (Wesley Guimarães), jovem que sofre de sua ira antes de alertar o policial Richard, tão determinado quanto destemido.
Tanto ao assistir o filme quando ao ler a HQ, é interessante acompanhar como a linha narrativa é desenvolvida, com breves flashbacks e flashforwards que tanto explicam os personagens quanto os correlacionam em uma mesma linha temporal. Extremamente fiel ao material original, Heitor Dhalia replica não apenas situações, mas até mesmo ângulos e enquadramentos feitos no papel, reverenciando Quintanilha também como observador do comportamento corporal humano. Para tanto, o diretor explora bastante a luminosidade típica da capital baiana em sequências que possuem bastante "teto", com um olhar da câmera de baixo para cima em relação aos personagens. Além disto, a opção pelo uso de lentes anamórficas permite que se alcance o traço de Quintanilha, especialmente nos momentos de luta envolvendo Richard, pela distorção do exibido. É quando o filme assume de vez seu lado quadrinhos, mesmo para quem jamais tenha ouvido falar de sua fonte de inspiração.
Ao perfeccionismo estético e à reverência ao material original, soma-se o trabalho coeso do elenco como um todo. Se Fabrício Boliveira se destaca pelas sequências mais físicas como Richard, o brilho maior cabe a José Dumont e seu Ney sempre raivoso. É ele quem segura a primeira metade do longa-metragem, quando os códigos desta história ainda não estão tão nítidos ao espectador.
Abusando da câmera tremida e do superclose, de forma a transmitir a reação imediata tão necessária à história apresentada, Tungstênio vai além dos quadrinhos ao exponenciar o uso da voz em off, bem mais presente e melhor explorada neste versão. Personificada com brilhantismo pelo ótimo Milhem Cortaz, a narração ganha ares provocadores e até mesmo sarcásticos, que tão bem se relacionam com o estado de espírito dos personagens - e, à sua maneira, evocando o que o próprio Heitor Dhalia fizera anos anos, em O Cheiro do Ralo. Por outro lado, pela narração intrínseca de todos os personagens ser apresentada pela mesma voz, isto também provoca uma certa confusão de início, antes de tal código ser plenamente compreendido.
Bastante ágil, Tungstênio é um filme impressionante pela forma como foi realizado, especialmente pelo esforço empregado para replicar o que é visto em sua inspiração maior. Se por um lado o louvor ao trabalho de Marcello Quintanilha traz o ritmo acelerado e a oralidade tão necessárias à esta trama, por outro entrega uma personagem sub-aproveitada, Keila (Samira Carvalho), também mal desenvolvida nos quadrinhos. Da mesma forma, há um certo vazio intencional em torno dos personagens, construídos de forma a servirem única e exclusivamente para este momento de explosão em conjunto - o que, de forma alguma, desmerece a sofisticada teia de acontecimentos costurada pelo autor. Um bom filme, repleto de personagens carismáticos, cuja forma se destaca em meio à ousadia de adaptar com fidelidade uma história em quadrinhos tipicamente brasileira.