O raso e o profundo
por Bruno CarmeloÉ possível entrar numa sessão de Entrelinhas com muita boa vontade: afinal, trata-se do primeiro longa-metragem de uma autora brasileira jovem, mulher, refletindo sobre os desejos femininos e sobre a intersecção entre diferentes artes. São temas complexos, que merecem mais atenção no nosso cinema. No entanto, diante do resultado, Entrelinhas torna-se um filme difícil de defender.
A cineasta brasileira Emilia Ferreira faz deste projeto americano a possibilidade de encontro entre uma autora de teatro, Jacqueline (Irina Björklund), e um diretor, Skene (Edoardo Ballerini), que aceita levar aos palcos as suas histórias parcialmente inspiradas de vivências pessoais. Existe a convicção de que os personagens são interessantes a ponto de despertar no público indagações fundamentais: Será que Jacqueline realmente viveu estas histórias? Qual dos dois detém o poder no contrato de adaptação? Na ficção, importa o grau de veracidade das histórias? Jacqueline e Skene podem vir a se apaixonar graças à afinidade das pesquisas amorosas?
Ora, é muito difícil se identificar ou sequer torcer por qualquer um nesta trama. Entrelinhas possui grande dificuldade em apresentar personagens: quando os vemos, já estão brigando, dizendo em voz alta o que pensam, evocando reflexões grandiloquentes sobre a natureza do amor. No entanto, frases como “Eu sabia que você jamais poderia viver longe do mar!” não fazem sentido se o espectador nunca tinha ouvido falar nessa característica de tal personagem, e “Você não quer consertar meus fios?”, sussurrado em tom sensual, parece insano na ausência de uma construção prévia dos desejos da personagem.
A direção torna a tarefa ainda mais árida para o espectador. Pela incapacidade de explorar espaços com dinamismo, as cenas se tornam enfadonhas: basicamente, as duplas de personagens (Jacqueline e Skene, David e Jacqueline) se encontram em dezenas de cenários diferentes, param em alguma pose artificial e declamam suas falas incessantemente. As idas e vindas no tempo, mesclando diferentes relações amorosas da protagonista, soam ainda mais confusas em função da montagem caótica. Somando estes problemas à direção de fotografia desigual (as cenas noturnas são particularmente ruins) e à trilha sonora insistente, temos algo próximo de uma telenovela de baixa qualidade.
A descrição de um filme como “novelesco” costuma ser uma muleta fácil da crítica de cinema, mas este projeto possui as ferramentas que o aproximam do formato televisivo. Em primeiro lugar, existe a aparência de gravidade e autoimportância: os personagens conversam em tons excessivamente sentimentais, citando nomes da arte erudita e da psicanálise. A direção tenta resolver qualquer o conflito de modo verbal, seja nas conversas entre personagens, seja em voz off, fruto da inabilidade em desenvolver impasses imageticamente. Esta cartilha audiovisual pobre, acreditando que o tema amoroso constitui uma qualidade em si, é comum à lógica das telenovelas e à estrutura deste longa-metragem.
Seria tentador apontar as boas qualidades do elenco, mas de modo geral, temos um grupo de atores pouco expressivo. O fracasso do conjunto é uma pena pois, aqui e acolá, percebe-se nomes realmente empenhados numa composição, como Edoardo Ballerini e Caprice Benedetti. Mas o filme termina como se não tivesse começado, atravessa a projeção sem peso, sem discurso, sem deixar marcas. Entrelinhas fala de amor, mas não consegue transmitir amor em imagens, fala de sexo, mas tem uma abordagem pudica do tema, fala de paixões marcantes e sanguíneas, mas revela-se de uma superficialidade glacial.
Filme visto na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2016.