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    Axé: Canto Do Povo De Um Lugar
    Críticas AdoroCinema
    3,5
    Bom
    Axé: Canto Do Povo De Um Lugar

    A Máquina

    por Taiani Mendes

    "Já pintou verão, calor no coração. A festa vai começar..." canta Ivete Sangalo na abertura de Axé: Canto Do Povo De Um Lugar. O documentário, que malandramente ignora o samba do Rio de Janeiro e apresenta Salvador como “principal palco” da maior festa brasileira, o carnaval, não esconde suas armas pesadas. Além de Ivete e da descrição parcial, não demoram a aparecer Caetano VelosoGilberto Gil, imagens do povão pulando atrás dos trios e o questionamento sobre a paternidade do movimento. Não há consenso, o que é bastante divertido, e a nomeação de Luiz Caldas como "o primeiro filho" por Caê leva o longa ao fácil modo retrospectiva, que poderia deixar a obra no limbo dos docs que mais parecem reportagem de TV, não fosse a forma atraente como o diretor Chico Kertész conduz a investigação. A ausência de menções a Dodô e Osmar, inventores do trio elétrico – e que inclusive estão na letra da canção que abre o filme: "Salvador se agita/numa só alegria/Eternos Dodô e Osmar" –, causa bastante estranhamento, mas superado isso o longa funciona como aula de história sobre os principais artistas e várias peculiaridades da chamada axé music, termo cuja origem pejorativa é devidamente explicada.

    Caldas é o primeiro da dezena de personagens destacados e já na apresentação de sua elétrica trajetória rumo ao estrelato entendemos que o gênero deve mais ao jabá, empresários e gravadoras do que aos rostos, vozes, corpos, coreografias e refrões grudentos que o espalharam pelo Brasil na década de 1980. Chacrinha é mais citado do que qualquer músico e o estúdio WR tem tanta importância que em determinado momento o diretor parece esquecer seu tema para dedicar valiosos minutos a um passeio com cara de vídeo institucional pelas mesas de som em que hits de Chiclete com Banana, Banda Reflexu's e Timbalada foram gravados.

    O "sistema" é atacado e a ganância dos empresários é considerada culpada pelo esfriamento dos sucessos baianos a partir dos anos 2000, junto com a desunião dos artistas locais. É curioso, no entanto, que as gigantescas mudanças na indústria musical nas últimas décadas sejam completamente ignoradas na apresentação dos fatores que provocaram a crise do estilo. É óbvio que um gênero baseado em aparições compradas em programas de TV e vendas de discos e CDs precisaria se reorganizar para sobreviver aos novos tempos e isso claramente não aconteceu. O que deu certo e continua dando é o esquema dos blocos. As bandas que sacudiram o país nos anos 1980 e 1990 – Beijo, Mel, Eva, Cheiro de Amor... – nada mais eram/são do que grupos montados por donos de trios para vender abadás, negócio que, apesar de tudo, sobrevive.

    Falando nos abadás, a principal falha do filme é deixar de tratar da participação direta do povo na folia de Salvador. As controversas cordas segregantes só são comentadas no momento em que a criação do primeiro bloco exclusivo é narrada, sem qualquer peso, como uma mera característica. O público consumidor não fala em momento algum, não tem voz, a não ser para cantar em coro os sucessos de verão. O racismo, por sua vez, aparece discreto em forma de alfinetada quando algumas bandas são descritas como "intermediárias" entre os blocos afros e o grande público. O tal "de quem é a música?", sempre vivo, apesar do egoísmo da cena, é um ponto sensível até hoje na Bahia, vide o recente caso envolvendo o hit do verão "Me Libera Nega", canção de MC Beijinho apropriada indevidamente pelo músico Filipe Escandurras.

    Fazendo o jogo de suas estrelas, Chico pesa um pouco a mão no star system mais para o final do longa e abre bastante espaço para a rainha (Daniela Mercury), o filho inquieto (Carlinhos Brown) e aquela que foi muito além do gênero (Ivete Sangalo). Claudia Leitte é jogada num deslocado clipe sensual apenas para marcar presença – imagina, falar de Ivete e Daniela e deixá-la de fora... – e, talvez pelo fato de todos ainda estarem em plena atividade, presentes na mídia, o trecho é menos interessante que a primeira metade. Para compensar, são exibidas bacanas imagens de arquivo, como a do famoso show de Mercury que abalou literalmente o MASP, a primeira apresentação de Ivete em São Paulo e cenas de Brown em início de carreira. O arquivo do É o Tchan, todavia, não empolga por conta da qualidade ruim dos registros.

    Uma valorosa aula sobre o produto do "estado disfarçado de gravadora", Axé: Canto do Povo de um Lugar decepciona por achar que colocar o povo no título seria o suficiente e, ao invés de analisar profundamente os erros cometidos pela indústria, escolher de certa forma imitá-la, vendendo Saulo Fernandes como o futuro do ritmo. Por mais que o diretor dedique os últimos minutos de seu informativo longa a empurrá-lo goela abaixo do público, a mensagem é esquecível. Permanece na memória a linha do tempo musical e surge a vontade de encontrar a melhor playlist possível de axé.

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