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    Críticas AdoroCinema
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    O chamado de Deus

    por Bruno Carmelo

    O drama francês se abre com a imagem de um garoto no banco de passageiros de um carro. Ele tem uma expressão de derrota, além de um olho roxo. A cena será repetida duas vezes, com pequenas variações, em contextos distintos. As três versões da cena do carro representam três momentos diferentes no filme, nos quais se transmitem visões conflitantes sobre o papel da religião na vida de Thomas (Anthony Bajon).

    A primeira visão é de ordem crítica. Assim que entra no internato especializado em tratar adolescentes com dependência de drogas, Thomas encontra uma mistura de cadeia e instituição militar. Os códigos de conduta se multiplicam, assim como as ordens sem explicação: ele é obrigado a pedir desculpas, mesmo sem se sentir culpado, é forçado a rezar, embora não creia em Deus, é proibido de ficar sozinho ou sair quando bem entende. Bajon transmite a indignação diante da arrogância do padre e dos colegas, repletos de frases prontas e um paternalismo de quem já enfrentou, e superou, o mesmo problema. A religião, inicialmente, é um instrumento de poder e de controle - uma violência disfarçada de altruísmo.

    Aos poucos, The Prayer abandona a raiva e o cinismo. Assim como o personagem, o filme se acalma. O cineasta Cédric Kahn explora com placidez o cenário bucólico das montanhas, com fotografia digital de altíssima qualidade, mas agora diminuindo os contrastes, explorando a luz do sol. Thomas se ilumina, portanto. Ele descobre a religião, menos como vocação do que como uma domesticação dos instintos que o levavam a se drogar. Se é Deus quem permite que ele viva sem drogas, então amamos a Deus. A lógica é acessória: dedica-se a uma figura porque ela nos fornece uma recompensa prática. A dedicação aos dogmas religiosos equivaleria a um bom investimento.

    Logo, nosso protagonista se vê apaixonado pelo cotidiano religioso. O espectador pode esperar algum tipo de reviravolta, mas ela não vem. Esta seria apenas a história do cristianismo resgatando pessoas perdidas? Kahn talvez tenha construído um filme gospel de qualidade, com montagem eficiente, realismo exemplar, boas atuações e personagens complexos, algo de que o subgênero do cinema cristão carece fortemente. Não há nada errado, afinal, em abraçar o discurso da salvação. Este seria um final sem história de amor, sem retorno aos valores familiares, porém baseado na paz de espírito e na autodescoberta. La Prière (no original) defenderia o valor terapêutico do catolicismo, ilustrado pela longa cena de confessionário, com os personagens compartilhando as suas histórias trágicas diretamente para a câmera – e, por consequência, para o espectador.

    No entanto, o roteiro dá uma última guinada nos minutos finais. De repente, Kahn cultiva a dúvida sobre tudo o que se viu até então. Os valores do cristianismo são reposicionados, de modo ambíguo. O que o filme pretende dizer, afinal, sobre Thomas, sobre Deus, sobre a sociedade contemporânea? Depois de abraçar com fervor a divindade – o filme cede espaço para a concretização literal do milagre – por que voltar atrás? The Prayer incomoda por sua indecisão. Em meio a questões morais e sociais tão importantes, isentar-se de um ponto de vista seria algo contestável ética e cinematograficamente – sobretudo em contraposição às escolhas estéticas tão seguras e bem executadas.

    Filme visto no 68º Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2018.

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