Projeto de cidadania
por Bruno CarmeloNum minúsculo vilarejo próximo de Buenos Aires, as ruas não têm nome. A professora Julia (Eva Bianco) decide reunir os alunos pré-adolescentes, entrevistar os moradores da cidade e definir um nome para cada rua, de acordo com as pessoas que marcaram a história de Puerto Pirámides. Aos poucos, o projeto cidadão toma grandes proporções, levando o grupo a cantos pouco acessíveis da Argentina, e tornando oficiais os nomes escolhidos.
As Ruas é um filme pequeno em quase todos os sentidos: duração, número de personagens, ambição narrativa, recursos para a produção. Trata-se de uma obra capaz de combinar ambição política e poesia do cotidiano. A intenção é dar voz aos esquecidos, tratando com carinho os habitantes humildes, valorizando a cultura popular ao invés da erudita. Não por acaso, a maioria dos nomes sugeridos para batizar as ruas correspondem a pessoas comuns, que nunca realizaram atos de bravura, mas são “pessoas boas”, “muito amigáveis” etc., de acordo com os entrevistados.
De certo modo, este é um pequeno tratado de grandes valores humanos. A diretora María Aparicio tinha em mãos os ingredientes perfeitos para mais um filme sobre professores idealistas que transformam a vida de seus alunos desfavorecidos, no entanto, evita a armadilha. O projeto apresenta um escopo pedagógico plausível naquele contexto, sem adquirir tons de heroísmo. Eva Bianco está excelente na condução dos alunos, adquirindo gestos e entonação de quem leciona há décadas. A naturalidade marca o filme inteiro, que segue os personagens com câmera fluida, muitas vezes preferindo captar os objetos dos cômodos ao invés de filmar corpos e rostos.
As Ruas efetua uma mistura equilibrada entre ficção e documentário: ele se assume como ficção pelo controle narrativo e condução linear da trama, mas comporta-se esteticamente como documentário, registrando as entrevistas de modo livre. É uma pena que a montagem, eficaz no ritmo, interrompa os depoimentos cedo demais, quando se tornam mais interessantes. Terminamos a projeção conhecendo menos do que gostaríamos sobre os pescadores fascinantes, responsáveis pela sobrevivência de várias gerações no interior da Argentina.
O ritmo também pode parecer monótono a certa altura da trama, pela sucessão inabalável de depoimentos e cenas cotidianos. O conflito é magro – nada se opõe ao projeto do grupo, a não ser eventuais problemas de logística, como um carro quebrado – mas fornece um olhar caloroso sobre um grupo de anônimos, a quem o cinema não costuma olhar. São pessoas que poderiam existir em qualquer bairro, em qualquer país, e quando falam de seus conflitos específicos, parecem dizer muito sobre questões universais.