Os super-heróis do Planalto
por Francisco RussoPlano Cruzado, Cruzado Novo, Collor e outros tantos. Quem tem mais de 30 anos lembra bem da época em que o governo brasileiro, seja ele qual fosse, de tempos em tempos soltava um novo plano econômico na ânsia em conter a inflação. Todos sonhadores, todos fracassados. Apenas em 1993, no governo de Itamar Franco, veio o tal "plano infalível". Sem nenhum outro a sucedê-lo, ao menos por enquanto, o impacto do plano Real na economia e sociedade brasileira foi tão significativo que, pouco mais de duas décadas depois, tem sua história narrada nas telas de cinema. A pergunta que fica é: foi apenas por isto mesmo?
Não é possível analisar Real - O Plano por Trás da História sem levar em consideração a conjuntura política do país, até mesmo para compreendê-lo melhor. Em um período de intensa rivalidade partidária, decorrente de fatos recentes envolvendo o impeachment de uma presidenta eleita e a enxurrada de denúncias de corrupção em praticamente todas as alçadas de poder, o que mais se vê é o ódio ao outro associado à intenção de eliminá-lo, sem que haja espaço para o debate. É neste ambiente que Real, o filme, não apenas se enquadra, como toma partido.
Produzido em um cenário político favorável aos seus criadores, o longa-metragem tem por consequência não apenas exaltar os responsáveis pelo plano-título mas também promover o preconceito, por mais que travestido através da opinião pessoal do personagem principal, o economista Gustavo Franco. Em tempos irracionais, onde uma fagulha é suficiente para provocar um incêndio, acusações a esmo potencializadas por um mecanismo poderoso como o cinema têm um alcance panfletário impressionante. E, é claro, isto não passou despercebido.
Diante desta conjuntura, é importante ressaltar que Real tem (alguns) méritos. Especialmente quando se muda de vez para Brasília, passando a esmiuçar os bastidores da elaboração do plano econômico. Mais do que propriamente o didatismo em torno de sua implantação, algo que o filme se dedica com afinco, o que realmente importa é o jogo político por trás da operação, durante e após sua realização. É no olhar amplo dos bastidores do poder que está o melhor do filme, seja através dos interesses existentes por trás de apoios (ou recusas) ou mesmo do fogo amigo, tiroteio provocado pelos supostos aliados. "O Brasil não é para principiantes", já dizia Tom Jobim, e um olhar um pouco mais aprofundado comprova facilmente tal teoria.
Por outro lado, para chegar a este contexto, o diretor Rodrigo Bittencourt assume decisões inusitadas e, por vezes, questionáveis. A começar pela caracterização de Gustavo Franco, personagem central do longa-metragem. Irascível e arrogante, ele é desde o início apresentado como uma pessoa extremamente difícil de lidar que não aceita quem pense diferente. A necessidade da vitória a todo custo aliada a uma necessidade de autoafirmação o leva a um sem-número de diálogos preconceituosos, alguns dos quais provavelmente serão exaltados pelos críticos ferrenhos da esquerda. É exatamente neste ponto que mora o perigo: por mais que, dentro da narrativa, Franco assuma o papel do "mal necessário" para que o plano Real saia do papel, devido à sua inteligência e teimosia, é assustador considerar que um personagem tão nocivo em suas atitudes possa ser cogitado como uma espécie de herói nacional, simplesmente por acusar determinado grupo político. Mal comparando, é como o capitão Nascimento de Tropa de Elite ser endeusado por matar bandidos ao invés de levá-los à justiça. Tal lógica é típica da realidade absurda que existe no Brasil, onde se busca eliminar a razão do problema ao invés de resolvê-lo. A isto também se dá outro nome: barbárie.
Ainda assim, dentro de tal caracterização, merece destaque o bom trabalho de Emílio Orciollo Neto na pele de Gustavo Franco. Sempre como se estivesse à beira de um infarto, ele é competente na construção deste personagem odioso e genial, que precisa lidar com aspirações e frustrações em questão de segundos - o embate com a repórter interpretada por Cassia Kis Magro é o melhor exemplo. Por outro lado, chama também a atenção a escalação de Bemvindo Sequeira na pele de Itamar Franco pelo caráter explícito do deboche com o "Mr. Fusca", como repetidas vezes é chamado. Só que, neste caso, o folclore existente em torno da figura pública de Itamar ameniza a caricatura.
Claramente inspirado na estética dos videoclipes, Real usa e abusa da edição ágil, narrações em off e trilha sonora repleta de rock'n'roll de forma a atrair o público jovem - há até a insólita cena em que o próprio Gustavo Franco sobe ao palanque para fazer um discurso como se fosse um astro do rock! Ao mesmo tempo, é de uma ingenuidade impressionante ao apresentar simbolismos visuais pífios, como a analogia de "Brasília em chamas" e a repetida aparição de tabuleiros de xadrez. Entretanto, nada supera a apresentação da equipe econômica responsável pela criação do plano Real: em câmera lenta e enfileirados, repetindo uma pose clássica dos filmes de ação, eles surgem como se fossem os super-heróis do Planalto, dispostos a salvar o Brasil. Inacreditável.
Por mais que acompanhar os bastidores do plano Real seja interessante pelo lado da ambição humana em um cenário político tão degradado e inconstante quanto o brasileiro, não se pode deixar de apontar os problemas, técnicos e conceituais, por trás do longa-metragem. Com um claríssimo discurso de exaltação de um grupo político em detrimento ao outro substituindo o importante debate em torno da escolha entre acumular riquezas e investir em desenvolvimento, o filme ainda apresenta informações de forma capciosa para atrair o espectador desatento a partir de notícias dos dias atuais. É o caso da citação ao juiz Sergio Moro em um contexto histórico até pertinente, mas jamais de tal importância para ser lembrado da forma que acontece.